A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considerou esta quinta-feira que, “no plano da justiça e da moralidade”, é “inaceitável que qualquer arguido aproveite as garantias atribuídas pela Constituição e pela lei para as desvirtuar” e fugir à justiça.

Em comunicado sobre a fuga para fora do país do arguido e ex-banqueiro do Banco Privado Português (BPP) João Rendeiro, a ASJP acrescenta que “tal situação é a todos os títulos inaceitável, mais ainda se, pessoalmente ou através de quem o representa no processo, se der ao desplante de usar esse facto para troçar das autoridades e dos portugueses”.

A ASJP refere, contudo, que, “como resulta dos factos agora conhecidos” e divulgados pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), até 13 de setembro “não havia fundamento legal para sujeitar o arguido (João Rendeiro) a medida de coação mais grave que o Termo de Identidade e Residência (TIR).

“Nem isso foi requerido, e o tribunal também não dispunha de qualquer informação que indiciasse risco de fuga. Quando esse risco foi conhecido, já o arguido estava ausente no estrangeiro”, argumenta a ASJP.

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Em defesa dessa argumentação, a ASJP refere que, no decurso do inquérito, da instrução e do julgamento, e até ao momento, João Rendeiro tinha “observado as obrigações decorrentes do TIR e nenhum facto tinha sido levado ao processo que permitisse considerar haver risco de fuga” que justificasse a aplicação de medida de coação mais restritiva da liberdade.

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A ASJP lembra ainda que a 13 de setembro, Rendeiro informou que estava ausente no Reino Unido até final do mês e que poderia ser contactado através da Embaixada de Portugal naquele país, sendo que “não pediu autorização prévia para sair (do país) nem tinha de o fazer”.

Só com esta ausência, entende a ASJP, violadora da obrigação de indicar um local de contacto, se indiciou perigo de fuga, o que levou a que o Ministério Público (MPP) e o assistente BPP no processo a requerer a reavaliação das medidas de coação do ex-banqueiro.

“Por isso, imediatamente, em 23 de setembro, o tribunal determinou que o arguido indicasse o local exato onde se encontrava e que comparecesse no dia 1 de outubro próximo para ser ouvido sobre a eventual aplicação de medida de coação mais grave”, relata a ASJP.

“Ontem (29 de setembro), o arguido, já conhecedor do despacho (da juíza), comunicou ao processo que não tem intenção de regressar a Portugal, pelo que o tribunal considerou logo verificados os pressupostos do agravamento das medidas de coação e determinou a sujeição a prisão preventiva, emitindo os competentes mandados para as autoridades encarregadas de o localizar, deter e devolver a Portugal”, adianta a direção da ASJP.

A ASJP sublinha que, nos termos da Constituição e da lei, a condenação a pena de prisão por um tribunal de primeira instância não é só por si elemento suficiente para sujeitar o arguido a prisão preventiva, se não existirem riscos que o justifiquem.

“A regra, decorrente das garantias de defesa do processo penal é que o arguido aguarde em liberdade até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, que pode demorar meses ou anos, dependendo dos recursos que possam ser interpostos para o Tribunal da Relação, Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal Constitucional”, explica a ASJP.

A ASJP nota contudo que, com o modelo legal e processual em vigor – em que “é sempre possível abusar dos mecanismos que permitem introduzir complexidade e morosidade e atrasar a execução das decisões condenatórias meses e anos a fio, muito para além do que é razoável, quando arguidos com capacidade económica se aproveitam de todos esses `alçapões´ para obterem benefícios imorais -, o mais fácil é responsabilizar os tribunais e o MP, que são a face visível do sistema e dão a cara por ele todos os dias”.

Segundo a ASJP, se dos cidadãos se têm de aceitar como “legítimos todos os sentimentos de incompreensão e repulsa por situações como esta” protagonizada por João Rendeiro, dos “atores políticos – ou seja, daqueles que organizaram o sistema e que têm a responsabilidade de o mudar quando se detetam fragilidades que potenciam situações imorais – tem de se esperar mais do que reações de aproveitamento e atribuição de culpas”.

A ASJP diz confiar que “no final se fará justiça e espera, como todos os cidadãos, que o arguido João Rendeiro seja devolvido às autoridades portuguesas para cumprir as suas obrigações e se sujeitar às consequências dos eventuais crimes que se provar ter cometido”.

“E quando o poder político, os órgãos com competência legislativa, acharem que é o momento para se discutir de maneira séria e aprofundada o nosso modelo processual penal, a ASJP está igualmente disponível” para o efeito, conclui a associação de juízes, que justificou a sua reação com o interesse público do caso da fuga João Rendeiro à justiça portuguesa.

Num dos processos, João Rendeiro foi condenado, em 28 de setembro de 2021, na pena de três anos e seis meses de prisão por crime de burla, mas ainda não foi notificado dessa decisão, por ter comunicado ao tribunal que se ia deslocar ao Reino Unido por razões de saúde.

Noutro processo, o ex-banqueiro foi condenado, em 14 de maio, a 10 anos de prisão, por crimes de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado e branqueamento, encontrando-se o processo na fase das alegações e respostas aos recursos.

Rendeiro foi ainda condenado, em 15 de outubro de 2018, a uma pena de cinco anos de prisão por crimes de falsidade informática e falsificação de documentos no âmbito de um outro processo, mas cuja decisão condenatória (já transitada em julgado) não foi ainda executada após recursos falhados para o Tribunal da Relação, Supremo Tribunal e Tribunal Constitucional.