Os 58 minutos de “Ataque dos Clichés de Hollywood” desaparecem tão depressa como aquela embalagem de gomas de marca branca que trouxemos connosco para o sofá. E têm mais ou menos a mesma tabela nutricional: não puxam carroça, mas sabem bem. Meio programa de humor, meio documentário pouco profundo, este conteúdo da Netflix faz exatamente o que diz na embalagem: debruça-se a desmontar os lugares-comuns que já vimos inúmeros vezes replicados em filmes, dos mais óbvios aos mais subentendidos. Alguns têm apenas graça (como o “meet cute”, a maneira sempre fofinha e inusitada como os casais se conhecem nas comédias românticas), outras têm potencialmente um peso sociológico (como o “white saviour” o mecanismo que coloca personagens brancas como as grades heroínas de filmes sobre negros vítimas de racismo).
O primeiro cliché começa logo no título, uma piscadela de olho a nomes clássicos e repetitivos de sequelas e/ou filmes de ficção científica – uma breve busca no Internet Movie Database por “Attack Of” revela logo 200 resultados. “Ataque dos Clichés de Hollywood” é apresentado por Rob Lowe, ele próprio um assumido estereotipo da estrela de Hollywood aborrecida por estar ali, mas sempre sorridente. A verdade é que Rob Lowe faz muito bem de Rob Lowe, do ator facilmente reconhecível mas que, provavelmente, nem entrou em nenhum filme do qual tenhamos gostado particularmente.
Para quem é cinéfilo, não há nada de particularmente pedagógico aqui. Este é assumidamente um conteúdo de zapping, talvez aquilo que a Netflix consegue concretizar melhor do que as suas concorrentes diretas no streaming – aquele borregar inane em frente à televisão até encontrarmos qualquer coisa levezinha que não nos tire o sono e que ajude a esquecer as chatices com o Telmo da Contabilidade.
[o trailer de “Ataque dos Clichés de Hollywood”:]
Sem ser, então, uma pepita de ouro dos conteúdos, “Ataque dos Clichés de Hollywood” cumpre a sua humilde função. As dezenas de clichés analisados por outras dezenas de pessoas são facilmente reconhecíveis e engraçados, que é apenas o que se pede aqui. Fica um ou outro factoide que podem dar jeito num jogo de Trivial ou para fazer conversa num elevador encravado, como o Grito Wilhelm (um efeito sonoro de um grito utilizado repetidamente em produções cinematográficas, samplando o original do filme “Distant Drums”, de 1951) ou o conceito de que existem apenas sete tipos de narrativas que encaixam em qualquer filme alguma vez feito (como pode ser conferido na bíblia de Christopher Booker, The Seven Basic Plots: Why We Tell Stories).
Os entrevistados que prestam curtas declarações são vários, não sendo dado tempo a cada um deles para ser particularmente memorável. O critério não é 100 por cento claro, mas mistura atores (como Florence Pugh, Andrew Garfield, Richard E Grant ou Andie MacDowell), críticos, guionistas, historiadores, ativistas e apresentadores de televisão. Há pequenos clips dos mais variados estilos, de westerns antigos ao “Rambo”, de “Quatro Casamentos e um Funeral” ao” Sexta Feira 13”. O espectador deve ir avisado para ter cuidado com alguns spoilers (a mim estragaram-me o “Mare Of Easttown”, que ainda não acabei de ver. É, ainda por cima, a única série – e não filme – que aparece). E se um dos capítulos é sobre mortes escabrosas de vilões, bom, vão ver os vilões a morrer naquele que seria o climax do filme.
A ideia de “Ataque dos Clichés de Hollywood” não é tanto destruir os clichés, mas sim mostrar que por vezes nos trazem conforto, que são inside jokes da indústria ou que narrativamente até podem ter uma razão de ser. Claro que o que é demais enjoa (já fiz paralelismo com gomas, certo?) e alguns perpetuam estereótipos que vão bem a tempo de serem reformados, como o já mencionado “white savior”, o “burn your gays” (a tendência para as personagens homossexuais morrerem na maioria dos filmes) ou a “manic pixie dream girl” (a rapariguinha efervescente que vem salvar o homem da sua vida cinzenta). Por vezes o gozo é só o reconhecimento, como se estivemos a jogar ao bingo do bordão. Se tudo isto vos despertar a curiosidade para o que é, afinal, escrever uma história para cinema, cabe-vos a vocês irem ler os livros de Syd Field e de Robert McKee ou ouvir os podcasts do John August (este último, por acaso, um dos intervenientes de “Ataque dos Clichés de Hollywood”).
A criação é de Charlie Brooker, que muitos conhecem como o criador de “Black Mirror”, mas que na verdade começou a ser um nome respeitado no meio com as suas certeiras, acutilantes e por (muitas) vezes cruéis críticas de televisão para meios de comunicação britânicos. A sua página no Guardian chamava-se “His Screen Burn” e teve tal sucesso que deu azo a livros e programas na BBC. Reza a lenda, aliás, que Brooker terá criado a série de ficção científica de sucesso da Netflix após ter ouvido inúmeras vezes a boca “então se és tão crítico do trabalho dos outros, vê lá se tu fazes melhor”. Anos a analisar filmes e programas de televisão trouxeram-lhe uma espécie de mestrado não oficial nos mecanismos narrativos mais repetidos.
Um ponto negativo que se pode apontar é que Brooker já mostrou ter mais atributos do que aqueles que revela aqui. “Ataque” é divertido, mas inconsequente – e não que haja, em termos absolutos, mal nisso. Mas soa a desperdício das capacidades do inglês. Soa, até, a um ataque de preguiça misturado com um contrato confortável com a Netflix. Alguém que fez uma das séries mais marcantes e determinantes da última década devia mesmo estar a perder tempo a gozar com os tiques das comédias românticas? O homem que, em entrevista ao The Guardian, disse ter ficado “furioso de inveja” com o brilhantismo da série da HBO “Succession” não deveria estar mais preocupado em escrever guiões que almejem semelhante qualidade? Até gostei destas gomas, mas fico a aguardar é o lavagante.