O sexo dentro de automóveis é um estereótipo do cinema. O sexo com automóveis é que já não, tudo pelo contrário. Em “Titane”, segunda longa-metragem da francesa Julia Ducournau, a realizadora põe a protagonista, Alexia (Agathe Rousselle) não só a ter relações sexuais com um automóvel (e logo um Cadillac…), como também a engravidar dele, e do seu corpo passa a sair óleo lubrificante ao invés de sangue e leite. Ducournau não se limita a cultivar, com esmero “gory”, o “body horror”: ela inventa também o “garage horror”. E “Titane”, que ganhou o Festival de Cannes há alguns meses, não se fica por aqui em termos de provocação explícita e exibicionismo visceral.

[Veja o “trailer” de “Titane”:]

O filme começa com Alexia pequena a viajar de carro com o pai. Há um violento acidente e a menina passa a ter de usar uma placa de titânio na cabeça, o que a leva de imediato a sentir desejos por automóveis nada próprios para uma criança da sua idade. “Titane” dá depois um salto para a frente no tempo e reencontramos Alexia, agora já crescida e ainda a viver com os pais, a ganhar a vida como dançarina erótica em exposições de automóveis. Ela é também uma “serial killer” que mata homens e mulheres indiscriminadamente, sem que o filme se preocupe em nos explicar como isso aconteceu e porquê.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Depois de ter feito um massacre no apartamento de uma colega, e pegado fogo a sua casa com os pais lá dentro e trancados por ela no quarto, Alexia foge à polícia disfarçando-se de um rapaz desaparecido em pequeno, cuja recriação da cara enquanto adolescente viu num cartaz (para esse efeito, parte o nariz no lavatório dos lavabos públicos de uma estação de comboios, em mais uma cena de grande subtileza). A manha resulta bem demais, porque acaba por ser identificada pelo pai do desaparecido, um chefe de bombeiros (Vincent Lindon), que a leva para sua casa sem sequer fazer um teste de ADN para se certificar de que é mesmo o seu filho. Alexia vai ter de ocultar quem é, esconder a gravidez e procurar integrar-se.

[Veja uma entrevista com a realizadora e os principais atores:]

O filme de estreia de Julia Ducournau, “Grave” (2016), sobre uma estudante de veterinária vegetariana que se torna canibal, apresentava já o mesmo desejo de provocação a todo o custo e o mesmo gosto por imagens-choque deste “Titane”. Só que, mal ou bem, “Grave” tinha uma ideia de história e um fio de lógica narrativa. Tudo o contrário deste desconjuntado, inconsistente e sumamente absurdo “Titane”, uma amálgama tonta, grosseira e ao nível da subcave, de temas cronenberguianos e delírios mutantes saídos das páginas da revista “Métal Hurlant”, com tempero de policial “trash”.

A realizadora deve estar convencida que fez um filme muito “transgressor” e “perturbante” sobre a identidade de género, o fetichismo das máquinas e as metamorfoses extremas do corpo. Mas bem pode atirar-nos com tudo (sexo com carros, fusão grotesca da carne e do metal, androgenia, sugestões homossexuais, insinuações incestuosas) menos a pia da cozinha. Longe de ser um filme de terror “físico” verosímil, coeso e genuinamente malsão, “Titane” é delirantemente incoerente e arbitrário, quando não mesmo ridículo. Ao mostrar demais, e mal, não deixa qualquer espaço à imaginação, e em vez de inquietar, faz rir. O que se seguirá para Julia Ducournau? Uma versão erótico-mutante de “Se o Meu Carro Falasse…”, em que o carocha Herbie deita os faróis a mulheres de carne e osso?