Nos últimos anos, a indústria automóvel tem andado nas bocas do mundo, tudo porque alguns dos seus mais respeitados representantes têm sido alvo de penalizações milionárias por instalarem sistemas fraudulentos para poluir mais do que permitido e anunciado, nuns casos, para noutros a ilegalidade consistir em fazer lobby ou agir como cartel, mais uma vez para aumentar os lucros. Mesmo se à custa de maiores danos para a saúde e para o ambiente. A última machadada na reputação da maioria dos construtores chega-nos pela mão da Transport & Environment (T&E), uma organização não-governamental que visa tornar mais sustentáveis os transportes europeus. A T&E publicou um briefing em que acusa a indústria automóvel europeia de recorrer a “truques sujos”, na realidade fazer afirmações não substanciadas e usar tácticas agressivas de lobbying, para criticar as medidas pró-ambiente exigidas por Bruxelas. No caso, a norma Euro 7 que a União quer implementar em 2025.

Há uma certa polémica em torno das emissões de dióxido de carbono (CO2) dos veículos equipados com motores de combustão, com cientistas a acusar este gás de incrementar o aquecimento global e outros a negar essa realidade. Menos contestada é a eficácia desta batalha contra o CO2 por parte dos países da União Europeia (UE) – o emitido pelos veículos, mas também o emanado pelas empresas produtoras de energia e pelas indústrias mais poluentes –, quando muito pouco ou nada é feito por outros países desenvolvidos, como a China e os EUA. Mas o que ninguém (seriamente) coloca em causa são os danos para a saúde provocados pelos poluentes produzidos pelos motores que queimam combustíveis derivados do petróleo, que se concentram nas grandes cidades, contaminando o ar e provocando doenças do foro respiratório e circulatório. É exactamente para reduzir as dezenas de milhar de mortes prematuras que todos os anos ocorrem na UE, provocadas pela poluição dos transportes rodoviários, que a União tem vindo a tornar cada vez mais exigentes as medidas antipoluição, a que os fabricantes de automóveis se opõem, segundo a T&E, investindo fortunas para promover truques e meias verdades, de forma a continuar a poluir e a manter os seus lucros em alta.

Vamos ver, ponto por ponto, os sete “truques sujos” denunciados pela T&E, ou seja, as informações que a associação considera falsas e que diz serem esgrimidas pelos construtores e pela sua associação que os representa na Europa (ACEA), numa tentativa de convencer a sociedade que o melhor para a saúde é… deixar tudo na mesma.

O Euro 7 vai acabar com os motores de combustão?

Não. Os fabricantes de automóveis esgrimem esta dúvida como uma das principais armas contra o Euro 7, acusando a UE de utilizar a introdução desta próxima norma para determinar consumos e emissões como forma de acabar com os motores de combustão. E “ameaçam” que isso vai colocar em causa empregos, investimentos e riqueza. Ora, a isto responde a própria UE, ao recordar que o objectivo é garantir que os veículos a comercializar a partir de 2025 sejam menos poluentes do que os actuais.

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Bruxelas lembra ainda que, para preparar as normas do futuro Euro 7, criou um consórcio independente de especialistas em emissões, vindos de toda a Europa, que denominou CLOVE e cujo papel consistiu em determinar as mais restritivas normas antipoluição. Mas isso deveria ser realizado com a preocupação da sua viabilidade técnica e económica, uma vez que nenhum país – membro da UE e, como tal, com voz activa sobre a matéria –, que dependa da indústria automóvel para fomentar o emprego e a riqueza, quer ver colocada em causa um dos seus principais pilares.

O Euro 7 é exequível tecnicamente?

Sim. Esta é outra das acusações frequentes dos construtores, mas são os próprios fabricantes a provar que este argumento não faz sentido. Para conter as emissões poluentes a partir de 2025, os veículos vão necessitar de e-catalisadores, com sistemas de aquecimento eléctrico para chegar mais depressa à temperatura de funcionamento, mas estes já existem, tal como também já estão disponíveis os catalisadores para eliminar a amónia.

Outra das soluções necessárias para minimizar as emissões poluentes dos veículos, segundo o Euro 7, passará pela utilização de dois catalisadores selectivos para tratamento dos NOx, com injecção de ureia, algo que a VW já utiliza em alguns dos motores turbodiesel, o que atesta sobre a sua exequibilidade.

É claro que, face ao Euro 6 introduzido em 2014, o próximo Euro 7 vai ser mais exigente e tornar os veículos mais caros, eventualmente diminuindo as margens de comercialização dos veículos. Mas nada disto é diferente de quando a norma Euro 6 substituiu a Euro 5. Segundo frisa a T&E, desde a Euro 1 que os fabricantes criticam as normas antipoluição.

O Euro 7 é demasiado caro?

Não. A T&E afirma que no apanhado que realizou nos países da União, morrem prematuramente, em território europeu, cerca de 400.000 pessoas por ano devido à poluição do ar, além de um número interminável de doenças do coração, pulmões e cancro provocadas pelo mesmo motivo. Sucede que o tratamento destas doenças leva a que os países da UE tenham de investir dezenas de milhar de milhões de euros anualmente, o que tem de necessariamente ser colocado sobre os pratos da balança. Isto porque, no outro prato, surge um custo por veículo entre 100€ e 500€ para ficarem conforme a norma Euro 7, valor calculado pela própria União Europeia. Parece ser um pequeno preço a pagar para tanto sofrimento e nenhum fabricante  contestou publicamente estes dados.

Partindo sempre dos dados recolhidos pelos técnicos independentes contratados por Bruxelas, os e-catalisadores e os duplos catalisadores selectivos de NOx custam cerca de 100€ a 200€ cada, o que significa que um cliente que tenha que suportar ambos despende menos dinheiro do que um condutor que pretenda uma pintura metalizada num pequeno utilitário tipo Ford Fiesta, que rondará em alguns mercados 700€.

Emissões mais restritivas são sinónimo de menos vendas e de mais carros velhos em circulação?

De acordo com a T&E, não. É sempre difícil adivinhar como vão reagir os clientes, mas é possível ter uma ideia de como vão reagir as vendas com a introdução da Euro 7 em 2025, com base no que aconteceu em 2014 com a Euro 6. Depois de implementada há sete anos, a Euro 6 não motivou perdas nas vendas entre 2014 e 2016, pois a análise do número de veículos transaccionados aumentou entre 700.000 e 2,8 milhões de veículos, face a 2013.

Pena é que não sejam criados sistemas de incentivos para retirar os veículos mais velhos – e por isso mesmo mais poluentes – de circulação. Em Portugal, a média de idade do parque automóvel é superior a 13 anos, sendo que abundam modelos com mais de 20 anos e a realidade dos países europeus mais pobres não será muito diferente. Daí que seja altamente desejável incentivar a troca de veículos muito velhos por outros mais recentes, o que certamente conseguiria reduzir de forma mais palpável as emissões totais do parque circulante.

Euro 7 vai conseguir melhorar a qualidade do ar?

Sim. Segundo a T&E, só em 2020 os construtores alemães investiram 9 milhões de euros em lobistas em Bruxelas para tentar suavizar, ou anular, a introdução do Euro 7. Na ânsia de contestar os objectivos da União, os construtores e a sua associação ACEA exerceram uma acção de lobbying tentando provar o impossível, ou seja, que uma norma que obrigue a veículos menos poluentes na realidade não teria efeitos práticos para a melhoria da qualidade do ar. segundo a T&E,

Obviamente, não seriam de esperar grandes mudanças a 2 de Janeiro de 2025, caso a legislação passasse a ser efectiva nas vésperas, ou até mesmo a 31 de Dezembro desse mesmo ano, da mesma forma que não houve grandes melhorias na qualidade do ar em 2015, depois da Euro 6 entrar em vigor no ano anterior. Mas, passados cinco ou 10 anos, as diferenças terão de ser evidentes.

A T&E respondeu às alegações da ACEA ponto por ponto, num processo que nem necessita de grandes conhecimentos técnicos, de tal forma são falaciosos os argumentos dos lobistas. Vamos fixar-nos apenas numa das meias verdades esgrimidas pela ACEA. Um estudo da associação dos construtores considerou apenas as emissões dos automóveis com motor diesel e os camiões, deixando de fora os veículos ligeiros com motores a gasolina. Recorda a T&E que os carros a gasóleo estão a cair nas vendas desde 2016 e os que montam motor a gasolina representam quase o dobro das vendas. Em 2020, os diesel reclamaram apenas 28% do mercado, contra 47,5% dos gasolina, com os motores a gasóleo a não deverem estar montados em mais de 15,2% dos carros vendidos em 2025, para continuar a cair para 5% em 2030. Deixar os automóveis a gasolina fora da equação parece um truque sem sentido e fácil de desmontar.

O Euro 7 ainda é necessário com a electrificação?

Sim. É certo que os veículos eléctricos vão continuar a ser cada vez mais procurados, com a Comissão Europeia a determinar que, a partir de 2035, apenas serão vendidos modelos alimentados por bateria ou fuel cells. Mas até lá, os veículos com motor a gasolina ou a gasóleo (mais os primeiros do que os segundos), vão continuar a ser vendidos. Mais do que isso, deverão representar 50% das vendas até 2030, segundo as previsões de Bruxelas.

Isto significa que, entre 2025 (ano em que o Euro 7 é implementado) e 2030, serão transaccionados mais 95,8 milhões de veículos com motor de combustão, de acordo com as estimativas da T&E, o que prova a necessidade das medidas mais restritivas. E estes carros ainda vão continuar a circular por, pelo menos, mais 11 anos, considerando que esta é a idade média do parque automóvel europeu.

Contudo, face à necessidade de respeitar os limites cada vez mais baixos de CO2, o mais provável é que a maioria destes motores de combustão surjam na altura associados a motores eléctricos em mecânicas híbridas plug-in (PHEV). Isto deverá implicar que o Euro 7 introduza uma alteração à forma como são calculados o consumo e as emissões dos PHEV.

Biocombustíveis e e-fuels são suficientes para reduzir emissões?

Não. Queimar biocombustível é claramente melhor para o ambiente do que consumir exclusivamente gasolina ou gasóleo convencionais, derivados do petróleo, pois pode ser considerado neutro em carbono. Isto significa que, apesar de emitir CO2 quando funciona, o motor acaba por emitir o carbono que as plantas que são utilizadas na sua produção consumiram durante o crescimento. Se isto é menos mau, não é completamente bom, uma vez que é necessário considerar os restantes poluentes, os tais que são nefastos para a saúde.

Os combustíveis sintéticos, ou e-fuels, só fazem sentido se forem produzidos a partir de carbono capturado da atmosfera e de hidrogénio gerado a partir de energia renovável. Ainda assim, são mais dispendiosos de fabricar e, quando queimados, os e-fuels devolvem à atmosfera o carbono que de lá foi retirado, o que não é a solução ideal. Se emitem menos poluentes do que os biocombustíveis, não evitam produzir óxidos de azoto, os nefastos NOx.

Independentemente das críticas da T&E, a realidade é que os construtores de automóveis e a ACEA teriam substancialmente mais capacidade de manobra, caso não tivesse rebentado o escândalo do Dieselgate em 2015. Todos os fabricantes germânicos, mas não só, estiveram envolvidos na utilização de um software fraudulento desenvolvido pela Bosch para ludibriar clientes e legisladores, poluindo mais do que o anunciado, o que custou só ao Grupo VW, cerca de 30 mil milhões de euros. Como se isto não bastasse, já este ano os mesmos intervenientes voltaram a ser apanhados a prevaricar, agindo em cartel para equipar os seus veículos com uma gestão do catalisador selectivo (SCR) com software que injecta menos solução de ureia do que o necessário para anular os NOx. Isto permitiu-lhes não instalar depósitos maiores do aditivo de que o SCR precisa para funcionar correctamente, o que os levou a serem multados em 875 milhões de euros.