Título: Eva & Eve
Autora: Julie Metz
Tradução: Teresa Mendonça
Editora: Casa das Letras
Páginas: 424

Neste livro, Julie Metz partiu da sua mãe para nos dar uma visão da Áustria ocupada por nazis. Para ela, a mãe era uma nova-iorquina como as outras, sendo difícil imaginá-la noutro chão que não o de Manhattan. Mas a vida, afinal, fora outra coisa.

É após a morte de Eve, a mãe, que a filha descobre um livro de recordações com notas de despedida a uma menina chamada Eva, de onde Julie parte para pegar nos traços da infância passada em Viena durante a ocupação nazi. A partir desse livro, inicia-se a incursão no passado e Eve, a mãe nova-iorquina, passa a Eva, refugiada e imigrante, sobrevivente do anti-semitismo e da xenofobia nazi. Passa, assim, a quem foi antes de se ter dado uma nova identidade, que lhe permitiu outra vida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O grande mérito do livro é a forma como Julie Metz entrelaça a experiência pessoal da mãe, fugida de Áustria em 1940, num exercício de investigação a fundo, com as grandes convulsões da época. Dá-as num panorama geral, mas vai ao indivíduo, transformando os números na devastação pessoal e na destruição de uma família. E transformando a vida numa fuga à morte.

Do presente, constrói o fio biográfico de quem julgava saber tudo, e afinal a nova-iorquina tinha passado pelos ziguezagues do racismo, e o que deixou para trás foi outro país e guerra. Mostrando ainda o alcance das acções de gente comum perante situações extraordinárias, o livro dá ao leitor a extensão do sacrifício e a habituação à morte e ao desaparecimento, assim como o estado de abandono de uma família cuja vida foi feita em bocados:

Tinham passado dezasseis anos desde que fugira com a família e nessa altura era uma mulher casada de vinte e oito anos. Ela e a sua mãe já haviam tentado, sem sucesso, obter restituição pelas perdas financeiras da família como resultado da tomada de posse nazi. Um funcionário do consulado austríaco em Nova Iorque tinha-a recusado com desprezo, protestando que os Austríacos também haviam sido vítimas de Hitler.” (p. 46)

A história de sobrevivência contada por Metz vem aliada a um intento claramente pedagógico, com longas passagens descritivas sobre as formações dos governos, o que inclui a tomada de posse do governo Trump em 2016, analisada pelos seus propósitos racistas e xenófobos e pela raiva anti-imigração enquanto megafone de propaganda isolacionista. Assim, partes deste livro sabem a tese ou a debate, já que Metz não se limitou à coisa seca, chapando os fragmentos das suas descobertas.

Ao invés disso, procurou um fio condutor para a compreensão das grandes convulsões políticas desde o século XX. Na primeira parte do livro, isto pauta-se por alguma volatilidade da narrativa, marcada em grande parte por uma ostensiva vontade de dizer, coleccionar e ligar. O paralelo entre a coetaneidade racista dos Estados Unidos e o anti-semitismo de Hitler durante a segunda guerra mundial fica feito a priori e é impossível mergulhar na vida da família da Eva, na segunda parte, sem essa bagagem, sem paralelizar ódio com ódio. Isto significa que, por vezes, é difícil seguir aquelas cabeças naquele momento, porque temos ecos constantes do presente, e Trump imiscui-se na paisagem da Áustria nazi em todo o esplendor.

O intento pedagógico parece tornar-se doutrinário, e ao leitor não é possível fugir do papel de receptor de argumentos. Julie Metz esforça-se por convencer num livro em que lhe bastaria mostrar. A história de Eva/Eve acaba, frequentemente, por deixar de ser o foco da história, sendo instrumentalizada para dizer o óbvio.

Ainda assim, o livro vale pela perspectiva que dá, e o esforço de concatenar o micro com o macro também não são de somenos. A prosa é incisiva, sem floreados e sem segundas intenções. Lê-se na vertigem de quem quer chegar ao monstro humano.

A autora não escreve consoante o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa