Quando era criança, havia dias em que Miguel Pinto abria o frigorífico lá de casa e, além dos iogurtes e vegetais do costume, havia uma experiência em curso. “A minha mãe é professora de Biologia no secundário, muito dedicada a essa parte mais experimental e, às vezes, trazia para casa as experiências que fazia com os alunos”, conta o cientista de 27 anos. Lembra-se bem, por exemplo, de ver três copos de gelatina alinhados nas prateleiras: um só com gelatina – o controlo –, outro com um pedaço de ananás fresco, o terceiro com ananás cozido. “O ananás fresco tem uma enzima, chamada bromelina, que degrada as proteínas. Então, no copo só com gelatina e no copo com ananás cozido – em que a enzima ficou inativa através da cozedura – a gelatina estava normal, solidificada. Mas no copo com ananás fresco a gelatina ficava líquida, confirmando a função da enzima.”

Crescendo com este exemplo de entusiasmo da mãe, a licenciatura em Biologia Molecular e Celular, na Universidade Nova, em Lisboa, foi a opção natural na altura de escolher um curso. Depois passou pela Universidade do Porto, onde fez o mestrado em Oncologia, trabalhando na tese no laboratório de Imunobiologia e Imuno-Oncologia de Bruno Silva-Santos, no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), em Lisboa. Agora está na Fundação Champalimaud, a fazer o doutoramento, com o apoio de uma bolsa da Fundação “la Caixa”.

Para descobrir que genes podem ter um papel no processo de crescimento das células, Miguel Pinto recorre à mosca da fruta, um dos modelos animais de eleição dos cientistas, já que 60% dos genes podem ser também encontrados nos humanos

No centro do projeto de investigação de Miguel Pinto – Crowding-Induced Cell Competition During Organ Development and in Cancer – está o conceito de fitness. Mas é um pouco diferente da acepção com que, geralmente, se usa a palavra em português. Este fitness é o equivalente a “aptidão”, um termo central na teoria darwiniana da evolução, que, em biologia, é utilizado para designar a capacidade de um organismo sobreviver e se reproduzir no seu meio, transmitindo os genes às gerações seguintes.

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Durante o  desenvolvimento dos nossos órgãos, as células competem umas com as outras: ganham as mais fit, ou mais aptas, em detrimento das mais danificadas. Acaba por ser uma espécie de seleção natural ao nível celular: as células que ganham a batalha conquistam o direito a perpetuar-se no tecido.”

Com o seu projeto, Miguel Pinto estuda um tipo muito específico de competição celular: aquela que é induzida por forças mecânicas, ou seja, que ocorre por compressão. Entre pessoas, há momentos em que a multidão é demasiado grande para o espaço que ocupa e cada um procura ganhar espaço. As células fazem o mesmo. “Quando um tecido ou um órgão está a crescer, as células estão a proliferar. Nalgumas ocasiões há demasiadas células para pouco espaço. As células sentem isso e competem entre si. Aquilo que queremos perceber é quais são as características das células que vencem – as mais aptas – e das que perdem e são eliminadas”, explica o investigador.

O objetivo do cientista é encontrar novos genes envolvidos no processo – aqueles que, a nível celular, dão capacidade de fitness às células, ajudando-as a sair vencedoras deste processo. “Não há ainda genes descobertos que nos digam como é que as células conseguem sentir estas forças compressivas. Descobrir esses mecanismos fundamentais é o primeiro passo do projeto.”

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Depois, importa olhar para a doença. E há uma em particular na qual a proliferação das nossas células é decisiva: o cancro. Há já muitas mutações genéticas identificadas associadas aos processos tumorais, como por exemplo o oncogene RAS e a mutação EGFR (receptor do fator de crescimento epidérmico). “Estas mutações nos tumores são essenciais para as células cancerígenas subsistirem e invadirem os tecidos adjacentes. São as mutações que as tornam mais resistentes do que as células normais a estas forças compressivas”, explica o cientista.

Para descobrir estes genes que podem ter um papel no processo de crescimento das células, Miguel Pinto usa a mosca da fruta. O insecto do género Drosophila (que inclui várias espécies) é um dos modelos animais de eleição dos cientistas, já que 60% dos genes podem ser também encontrados nos humanos e 90% dos genes que nos podem causar cancro são encontrados igualmente nas Drosophila. Além disso, o seu ciclo de vida é rápido – vivem no máximo três meses – e existem muitas ferramentas de edição desenvolvidas para alterar o seu genoma.

Reino Unido, Espanha ou mesmo continuar em Portugal. O jovem investigador não sabe ainda que passos dará depois da conclusão do doutoramento. Mas, para já, o foco é o projeto em que está envolvido e as respostas que poderá trazer na luta contra o cancro

Descobrir os genes envolvidos é um processo de tentativa-erro. No caso da mosca da fruta, explica Miguel Pinto, o processo de competição induzida por força mecânicas tem sido descrito como muito importante para a formação do tórax dorsal (costas) da mosca. Através das ferramentas genéticas, é possível alterar a expressão de um gene neste órgão da mosca e observar o seu efeito. Assim, vários genes vão sendo alterados individualmente e, “se o tórax dorsal da mosca se tiver desenvolvido com malformações, elas são indicativas de que o gene em questão pode ser relevante no processo de competição induzida por forças mecânicas.”

Depois disso, os testes de validação são feitos ao vivo: esta luta celular é vista, em tempo real, ao microscópio. “Para ter a certeza que o gene está envolvido, tenho de ver o processo a acontecer durante o desenvolvimento. A Drosophila passa por uma etapa de pupa – em que está dentro de um casulo – e é nesta fase que o tórax dorsal se desenvolve. Disseco as pupas retirando o casulo para ficar com a parte do tórax dorsal à vista e, ao microscópio, consigo ver este processo a acontecer. É fascinante ver isto ao vivo. É uma das partes do processo de que gosto mais.”

Miguel Pinto com Catarina Costa, Denise Camacho e Maria Bettencourt, estudantes de também estudantes doutoramento na Fundação Champalimaud, em Lisboa

O que também é fascinante é que se aproxima de uma descoberta que pode vir a ser muito útil na luta conta o cancro. “O nosso objectivo é encontrar um gene que, se expresso nas células tumorais, as faça parar de crescer, independentemente das mutações que tenham adquirido.” Ainda com dois anos de investigação pela frente e com alguns genes de interesse já identificados, é precisamente nesta fase de observação ao vivo que Miguel Pinto se encontra neste momento.

O investigador tem mais dúvidas do que certezas sobre o que quer fazer depois: talvez rumar ao Reino Unido, talvez a Espanha, talvez ficar por cá. Talvez manter o atual tema de investigação ou talvez regressar à imunologia. “Ainda não pensei muito nisso. Por agora, estou focado em ter o melhor resultado possível neste projeto.” E, assim, ajudar a encontrar novos mecanismos para lutar contra o cancro.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. Miguel Pinto, atualmente a desenvolver trabalho na Fundação Champalimaud, foi um dos 65 selecionados (11 em Portugal) – entre 1078 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do programa de bolsas de doutoramento INPhINIT. O investigador recebeu 115 mil euros para desenvolver o projeto Crowding-Induced Cell Competition During Organ Development and in Cancer ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 deverão abrir em breve.