Foi a 16 de outubro de 1968, há praticamente 53 anos, na Cidade do México. Pouco depois de conquistarem o ouro e o bronze nos 200 metros dos Jogos Olímpicos, Tommie Smith e John Carlos subiram ao pódio com um objetivo: utilizar a plataforma que tinham, aproveitar o facto de o mundo estar todo a olhar para eles, esquecer o medo e o receio e apontar para o que se estava a passar nos Estados Unidos, em particular, e em todo o planeta, no geral.

Tommie Smith e John Carlos fizeram muito mais do que levantar o punho e protestar contra o racismo, a brutalidade policial e a segregação racial que ainda era uma realidade nos Estados Unidos. Tudo o que os dois atletas fizeram no pódio, tudo o que vestiram, tudo o que prepararam, teve um significado. Com apenas um par de luvas pretas entre os dois, a mão direita de Smith significava “o poder dentro da América negra” e a mão esquerda de Carlos representava “a união negra”; o cachecol negro que Smith usou lembrava o orgulho negro; as meias pretas que ambos usaram, sem sapatos, representavam “a pobreza dos negros na América racista”; e o colar de missangas que Carlos utilizou recordava os linchamentos de afro-americanos.

2008 ESPY Awards - Show

Tommie Smith (direita) e John Carlos (esquerda) têm sido agraciados com diversos prémios e distinções ao longo das últimas décadas

Para Tommie Smith, aquele momento foi o culminar de uma luta que vinha a travar há muito tempo. O sétimo de 14 filhos de um casal pobre do Texas rural, o antigo atleta conseguiu chegar à San Jose State University através dos bons resultados no atletismo. Estudou sociologia em pleno movimento dos direitos civis e rodeado de eventos como a Marcha de Washington, o bombardeamento da 16.ª Igreja Baptista no Alabama por parte do Ku Klux Klan ou o assassinato de Malcolm X. Em 1965, num sábado de manhã, bateu os recordes mundiais dos 200 e dos 220 metros num meeting e à tarde estava a percorrer quase 50 quilómetros numa marcha de San Jose a San Francisco. “Estava habituado a trabalhar, era um rapaz da quinta, um trabalho fisicamente duro. Por isso, não me incomodou. Voltei e dormi umas quatro ou cinco horas no dormitório. No dia seguinte, treinei e fui para as aulas e voltei a treinar à noite. A vida continuou”, recorda ao The Guardian.

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Em 1968, no México, tudo começou com o hino. “Quando ouvi as primeiras notas do hino, baixei a cabeça e não vi mais nada até à última nota. Desde aí que me arrepio quando ouço essas três notas”, conta Tommie Smith, agora com 77 anos. 53 anos depois de um momento que é agora interpretado como uma das ações capitais no movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, o antigo atleta recorda aqueles instantes como momentos de “dor e oração”: dor, porque tinha saído lesionado da final dos 200 metros, apesar de a ter vencido; e oração porque tinha noção de que estava a arriscar a própria vida. A polícia mexicano tinha disparado contra uma manifestação estudantil duas semanas antes, matando 300 pessoas. Martin Luther King tinha sido assassinado seis meses antes. Tommie Smith sabia que a possibilidade de ouvir um tiro a meio do hino norte-americano era mais do que real.

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Mas ninguém disparou. Os dois atletas norte-americanos saíram do pódio — acompanhados pelo australiano Peter Norman, que conquistou a medalha de prata e usou um crachá do Projeto Olímpico para os Direitos Humanos — e depressa perceberam que as consequências seriam silenciosas. Smith e Carlos serviram de exemplo e foram expulsos de imediato da Aldeia Olímpica, partindo para casa. Quando chegaram aos Estados Unidos, acompanhados pelas mulheres, ninguém os recebeu no aeroporto à exceção de alguma comunicação social. Um jornalista negro acabou por dar-lhes boleia para casa, já que nenhum tinha o carro no aeroporto e não havia aparecido qualquer representante da estrutura olímpica norte-americana.

“Quando voltei à Califórnia, as pessoas afastavam-me como se eu fosse lava quente. Tinha um filho pequeno, uma mulher e tinha de trabalhar mas os únicos trabalhos que encontrava era a lavar carros. Se eu fosse branco, com 11 recordes mundiais, acredito que teria tido algum apoio independentemente daquilo que tivesse feito na Cidade do México ou nos Jogos Olímpicos”, garante Tommie Smith, que atualmente está envolvido numa academia de liderança e tem inúmeros projetos empresariais. A carreira desportiva, contudo, acabou naquela noite de outubro de 1968.

Men Receiving Olympic Medals

Os dois atletas deixaram o recinto da Cidade do México ainda com o punho levantado

Aos 24 anos, voltou à universidade e acabou a licenciatura em sociologia. Ainda jogou futebol americano nos Cincinnati Bengals ao longo de algumas temporadas mas dedicou-se ao ensino logo depois de terminar o mestrado, permanecendo como treinador de atletismo em praticamente todas as escolas em que lecionou. Ao longo das décadas, a atitude de corajosa de Tommie Smith e John Carlos acabou por ser reconhecida e celebrada — principalmente a partir do final da segregação racial. Os dois atletas entraram em diversos halls of fame, receberam vários prémios e distinções e a imagem mítica em que ambos levantam o punho no pódio olímpico tem sido homenageada em estátuas, murais, documentários e até t-shirts e videoclips. O fato de treino que Tommie Smith usou está no Museu Nacional da Histórica Afro-Americana, em Washington DC, e ambos foram convidados para serem embaixadores dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, numa espécie de pedido de desculpas institucional.

“O desporto e a política, na minha terminologia de seguir em frente e chegar à verdade, sempre foram parte integrante um do outro. Eu não usei vermelho, branco e azul porque eram as minhas cores favoritas. Eu não cantei o hino nacional porque tinha uma batida porreira. Eu fiz tudo aquilo porque tinha de o fazer. Quando Deus nos dá algo para fazer, nós não questionamos o porquê. Fazemos, apenas, porque o nosso coração nos diz que tem de ser feito”, explica o antigo atleta, que se mostra totalmente contra as regras que proíbem “atos ou gestos políticos” no desporto internacional. “Eles pensaram que a bandeira era mais importante do que as pessoas que trabalharam para que ela voasse sequer. Eu tenho muito respeito por aquela bandeira. Muitos negros perderam a vida por aquela bandeira, tal como muitos brancos. Mas aquela era a minha plataforma. Era para ali que o mundo estava a olhar. Eu escolhi a posição da vitória para o meu gesto silencioso. Como as pessoas interpretaram é como interpretaram, porque não foi sobre a bandeira. Eu adoro aquela bandeira porque também representa a minha gente”, termina.