“Tem dias que chego aqui e tenho vontade de chorar.” As palavras de José Divino, condutor do camião de ossos, já deram a volta ao mundo. Com elas, deram a mesma volta as imagens que fazem Divino chorar. Quando conduz o seu camião pelo estado do Rio de Janeiro, o motorista transporta centenas de carcaças e sebo de animais. Os ossos servem para ser transformados em ração e a gordura em sabão. Com a pandemia de Covid-19, e com 20 milhões de brasileiros a passar fome, a carga de Divino ganhou uma nova dimensão. Agora, serve também para acalmar a fome a muitos brasileiros.

“O meu coração dói. Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploraram por um pouco de ossada para fazer comida. Duas ou três pessoas em situação de rua passavam aqui e levavam. Hoje, tem dia que tem umas 15 pessoas”, contou o homem, de 63 anos, ao Extra. Foi o jornal brasileiro que ao fazer capa com as imagens da autoria de Domingos Peixoto, fotojornalista brasileiro da Agência O Globo, fez com que viajassem além fronteiras. A manchete? “A dor da fome.”

Quase 20 milhões de brasileiros passaram fome alguns dias em 2020

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No meio de ossadas, as imagens mostram brasileiros à procura de um pedaço menos estragado para comer. E uma mulher, avisada pelo repórter Rafael Nascimento de Souza para evitar um pedaço de carne descartada, responde apenas: “Meu jovem, ou comemos isso ou morremos de fome.”

Vários jornais, tanto no Brasil como no estrangeiro, mencionaram o trabalho do fotógrafo várias vezes premiado — em 2003, Domingos Peixoto ganhou o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha com a fotografia “Retrato do desemprego”. Mas foi quando o Guardian fez referência à reportagem que a história ganhou fôlego internacional.

E é no jornal britânico que o fotógrafo junta palavras às imagens que as dispensam. “Não durmo há dois dias, a tentar processar tudo”, contou. “As pessoas estão a cozinhar com lenha — e não apenas os sem-abrigo… Droga, temos de encontrar maneira de contar essas histórias para ver se podemos ajudar de alguma forma”, desabafou.

Na reportagem, que dá conta de uma taxa de desemprego de 14,1% no segundo trimestre de 2021, são recolhidos vários depoimentos. Um deles é de Vanessa Avelino de Souza, 48 anos, que explica como aproveita cada pedaço de osso que ia ser transformado em ração de animais: “A gente limpa e separa o resto de carne. Com o osso, fazemos sopa, colocamos no arroz, no feijão… Depois de fritar, guardamos a gordura e usamos para fazer a comida”, conta, lamentado que os cinco filhos tenham de viver com a avó. “Não temos quase nada. O que temos é de doações. Lá, pelo menos, eles têm um pouco de dignidade.”