É já um lugar-comum a frase de Tolstói em “Anna Karenina”: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.”. A terceira temporada de “Sucession” marca, para nosso rejubilo, o regresso da família da televisão que mais jeito tem para ser olimpicamente infeliz – e para labutar com afinco em tornar os outros infelizes.
Depois de dois anos de espera, dilatados pelos constrangimentos da pandemia, a saga da família bilionária Roy (e da tensão causada pelas ambições desmedidas de todos os seus membros, salivando pelo poder à frente do conglomerado de media e entretenimento Waystar Royco) regressa em absoluto pico de forma. O final da temporada passada deixou-nos com uma bomba atómica nas mãos: Kendall, o eterno filho sucessor que nunca o chega a ser, usa uma conferência de imprensa na qual deveria assumir as culpas pelos escândalos da empresa para acusar o pai – Logan Roy — de variados crimes, incluindo o encobrimento da violação de funcionárias. A terceira season começa no rescaldo imediato desse momento. Ainda cheira a queimado, temos os ouvidos a zunir e há estilhaços em toda a parte – a guerra civil é desbragada e todos devem escolher um lado. Todos? Bom, nem seria a família Roy se não houvesse algum jogo duplo. Afinal, aqui, o individuo valoriza sempre mais o apelido que a família.
[o trailer da terceira temporada de “Succession”:]
“Sucession” é, sim, a verdadeira Guerra dos Tronos. Mas, no paralelismo com esse outro êxito também da HBO, é como se todos os personagens fossem o odioso Jeffrey da saga de fantasia. Só que aqui bem reais, ou não fossem baseados com mais ou menos evidência nos Murdoch, nos Redstone ou até nos próprios Trump. É uma série que nos faz querer assistir para os ver a falhar. Como espectador, quem nos dá mais pica odiar? Quem está numa herdade de luxo, sim senhor, mas a ser profundamente infeliz? No fundo, “Sucession” quase nos faz sentir bem com o nosso Fiat Punto usado e o nosso T2 por pagar. Eu disse quase.
O tom e clima de uma série permanentemente tensa e conflituosa poderia ser insuportável se não fosse um ligeiro detalhe: “Sucession” é o melhor drama atualmente em televisão, mas é igualmente perfeito quando decide – amiúde – ser uma comédia. E sim, é na categoria de Drama que limpa, merecidamente, tudo o que é Emmy ou Globos de Ouro. Mas esta acidez corrosiva não se faz sem muita graça. Os diálogos são brutos e witty e há, a tempos, uma burrice e desligamento da realidade com grande potencial humorístico. Os atores que dão vida a Cousin Greg (Nicholas Braun), a Roman Roy (Kieran Culkin ) ou a Tom Wambsgans (Matthew Macfadyen ) são exímios atores de comédia, apesar de conseguirem ser shakespeareanos quando a trama assim o pede. E a competitividade quase parece um roast, ainda mais exacerbado numa terceira temporada que oficializa uma família em cisão.
Numa altura em que os bilionários estão na ordem do dia, “Sucession” apresenta-se com uns valores de produção que, efetivamente, se esforçam por replicar a obscenidade da riqueza extrema. Não mandam ninguém ao espaço num gigantesco pénis reluzente, mas há, por exemplo, uma cena nesta temporada na qual pai e filho desavindos se dirigem a uma mesma reunião cada qual no seu jato privado – e, depois, cada qual no seu helicóptero. O torrar de dinheiro sem questionar, a ideia de que a vida sempre foi assim e sempre será, como se fosse um direito hierárquico, monárquico, absoluto. É como um tabuleiro de xadrez onde só há aristocracia, onde os peões nem têm direito a um quadrado, de invisíveis que são.
O pai, os filhos e todos os outros: “Succession” e os episódios de uma novela implacável
A terceira temporada comprova que “Sucession” está naquela fase de pico de forma na qual cada grupo de episódios é melhor do que aquele que o antecedeu. Com a Netflix a apostar em conteúdos mais descartáveis e a HBO a arriscar mais em mini-séries, “Sucession” é talvez o último grande bastião da chamada golden age of television. Uma série longa, que se demora no seu requinte, com uma impressionante atenção ao detalhe, soberbamente interpretada, muito bem realizada e editada – e escrita com tal precisão que nenhuma fala é menos que um dez em dez. O ritmo de cada episódio é vertiginoso, mas o caminho até lá chegar foi ponderado e aperfeiçoado, sem exageradas pressas.
O resultado é uma sucessão de cenas épicas que incluem (não vou spoilar, vá) uma música dos Nirvana a rasgar num sistema de som, um copo de champanhe a levar um safanão para evitar um brinde desmerecido, catálogos de prisões ou um saco de papel com um gato imaginário. Passemos nós tempo guloso com os Roy, já que eles não gostam de passar tempo uns com os outros. Venha a quarta temporada.