O presidente do Supremo Tribunal de Justiça defendeu esta quinta-feira que “o trabalho remoto e a virtualização de conferências e julgamentos”, através das tecnologias, “não podem constituir a regra” na justiça, alertando ainda para a degradação das instalações dos tribunais.

Não podemos querer uma justiça com tribunais transformados em locais ermos, ocupados por máquinas que se encarregam de trazer e fazer chegar aos destinatários as notícias sobre o desenvolvimento dos processos, com juízes e funcionários sistematicamente ligados a ecrãs nos mais diversos locais”, disse Henrique Araújo, que preside também, por inerência, ao Conselho Superior da Magistratura (CSM).

O presidente do Supremo (STJ) discursava na abertura do XV Encontro do CSM, este ano subordinado ao tema “A (Des)Humanização da Justiça – Tecnologia como meio e não como fim”, assunto que Henrique Araújo classificou de “ingente atualidade”.

O juiz conselheiro do STJ reconheceu que durante a pandemia do Covid-19 a utilização das tecnologias e das plataformas audiovisuais Webex, Teams e Zoom, que possibilitaram a comunicação à distância,  foi “indiscutivelmente útil”, “positivo” e “determinante” para a atividade dos tribunais, mas tal “não pode servir de pretexto para mudar radicalmente” o modelo de funcionamento dos tribunais.

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É nos tribunais, espaços físicos, que se faz a Justiça. É aí que os juízes exercem a função jurisdicional. É aí que se manifesta um dos poderes soberanos do Estado. A presença do juiz no tribunal transmite confiança e segurança aos cidadãos através da perceção da autoridade que dele emana enquanto titular de um órgão de soberania”, argumentou.

Quanto às audiências de julgamento, em particular, Henrique Araújo referiu que “não se descortina como é que a sua realização à distância pode dar cumprimento aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação”, uma vez que “sem a interação pessoal, direta e imediata dos vários intervenientes, própria da dinâmica do julgamento, é difícil atingir uma decisão justa e equitativa“.

Sem questionar certas vantagens da informatização e da digitalização dos processos, o juiz conselheiro entende que daí também deriva “perigo real de funcionalização” da magistratura judicial.

“A generalização da via virtual na atividade judiciária acabaria por dar força àqueles, felizmente poucos, que não desistem de ver definitivamente abolida a independência do poder judicial e dos tribunais”, acentuou.

Henrique Araújo apontou as conclusões do estudo realizado pelo Grupo de Reflexão (CSM e Associação Sindical dos Juízes Portugueses) segundo as quais “a possibilidade de tramitação processual à distância não deverá significar uma total deslocalização física do juiz da Casa da Justiça, mostrando-se o exercício pleno e em condições de normalidade da função jurisdicional incompatível com o regime exclusivo ou quase-exclusivo de teletrabalho”.

Assim, expressou, serão “as circunstâncias de cada caso (judicial) que vão enformar o juízo de oportunidade sobre a realização de diligências e audiências à distância, sempre com balanceamento dos interesses em jogo, sempre com equilíbrio e bom senso, sempre como mera alternativa excecional”.

Por outro lado, adiantou, a aposta que tem vindo a ser feita nas tecnologias digitais deverá ser acompanhada da melhoria das condições físicas dos tribunais.

Não é aceitável, ou melhor, parecerá contraditório, dispormos de tecnologias muito avançadas em tribunais degradados ou instalados em estruturas teimosamente provisórias, sem as mínimas condições de dignidade e conforto”, vincou.

O juiz conselheiro salientou que este encontro anual do CSM permitirá refletir sobre as vantagens e desvantagens do uso das novas tecnologias nos tribunais e apontar caminhos para uma justiça que, “não renegando a modernidade e o avanço tecnológico, se aproxime mais dos cidadãos em vez de se distanciar deles”.

“Nessa reflexão será também considerada a utilização pelo sistema judicial da inteligência artificial, nova ferramenta da revolução tecnológica e digital, cuja aplicação ao sistema judicial deve ser objeto de rigorosa apreciação”, disse ainda.

Apesar de não integrar a temática do encontro, Henrique Araújo aproveitou para lembrar que uma das competências do CSM é agir no campo disciplinar, investigando e, se for caso disso, sancionar condutas de juízes desrespeitadoras dos deveres funcionais a que estão adstritos.

Nessa tarefa, realçou, o CSM tem contado com a “total disponibilidade de juízes conselheiros jubilados que, prescindindo da tranquilidade do estatuto da jubilação, têm instruído processos de averiguações e disciplinares relacionados com situações funcionais complexas e de grande impacto público”, sem identificar nenhum caso em concreto.

Henrique Araújo agradeceu o trabalho desses juízes jubilados e apelou para que “continuem na infindável tarefa de dignificação da justiça portuguesa”.