Concretizar o sonho de regressar a casa custa cerca de três euros por mês, conseguidos a custo por cada mulher num sistema de poupança solidária em Ngalane, campo de deslocados de guerra no norte de Moçambique.

São 200 meticais (2,70 euros), um valor elevado para quem perdeu tudo e vive de donativos, mas Muanansali Dade, 49 anos, faz biscates todos os dias, sobretudo a limpar campos de cultivo (machambas) de quem precisa. E assim consegue juntar aquela quantia para ao fim do mês contribuir para o “xitique”.

Ela lidera um grupo de poupança – “xitique” na tradição regional – composto por 25 mulheres deslocadas a viver no campo de reassentamento de Ngalane, em Metuge, junto a Pemba, capital provincial de Cabo Delgado.

A cada tarde do último domingo do mês, as participantes encontram-se debaixo de uma mangueira frondosa.

Sentam-se no chão ou sobre as lonas doadas por organizações de socorro, dispõem comida confecionada para a ocasião e entregam a uma das pessoas do grupo, previamente selecionada, o valor de 200 meticais (2,69 euros) cada uma.

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A cada mês há uma selecionada e o resultado da poupança há-de chegar a todas, assim manda a tradição desta secular forma de amealhar, que também é a que ajuda famílias e dá esperança em Cabo Delgado.

As mulheres juntam-se sob um nome: grupo Kulipilila, que na língua quimuâni significa “suportar“, algo que fazem juntas desde maio.

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Maimuna Antumane, 52 anos, está feliz: foi uma das primeiras do grupo a receber o fruto do ‘xitique’ num valor total de 4.800 meticais (65 euros).

“Vou guardar para voltar para Quissanga”, disse a mãe de quatro filhos, com idades entre os cinco a 27 anos, todos fora da escola.

Antes dos ataques rebeldes a vida já era difícil naquela vila costeira, mas com a guerra o cenário piorou: Maimuna perdeu tudo.

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O ‘xitique’ pode ser o caminho “para recomeçar”, diz, desde logo para substituir a rede de pesca, seu sustento, queimada durante os ataques.

Anatércia Carlos, 37 anos, uma das mais novas do grupo Kulipilia, mãe de quatro filhos, não se quer lembrar do passado e dos dias em que fugiu dos tiros de insurgentes com as crianças. 

“Foram dois dias sem sono, o meu irmão foi raptado e até hoje não sei do seu paradeiro. Será que está vivo?”, questiona, dizendo que ele era tudo para ela, num mundo em que ambos nunca chegaram a conhecer o pai.

“O ‘xitique’ é bem-vindo. Quero comprar produtos para ir vender em Quissanga”, referiu, também em quimuâni, língua corrente na vila que tiveram de abandonar.

A chefe do grupo, Muanansali Dade, supervisiona o encontro, sem perder as crianças de vista.

Tal como as companheiras de ‘xitique’, deixou tudo, incluindo as redes que outrora usara na pesca, perdeu os documentos, passou sete dias a fugir, sem água nem comida para juntamente com seis filhos escaparem à violência.

Agora olha para outros horizontes: o grupo de poupança é uma das formas de voltar a sonhar com uma vida melhor após a guerra.