Se tivesse uma máquina do tempo, um dos momentos da história a que o investigador holandês Marc Veldhoen gostaria de regressar seria “a partir dos anos 1000”, sensivelmente. “Para assistir de perto aos primeiros conhecimentos médicos” que inspirariam o conhecimento do corpo humano e o tratamento de doenças, na época medieval.

“Muitas vezes pensa-se que esse conhecimento começou em 1500, mas começou muito antes”, diz o investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa. “Foi um processo muito lento e tudo isso me intriga.”

Ainda hoje, na hora de escolher livros para ler, Veldhoen, o qual é também membro do Conselho Editorial da European Journal of Immunology, escolhe narrativas históricas para o acompanhar nos poucos tempos de lazer. É que o líder do laboratório que investiga a regulação do sistema imunitário, para descodificar como usar determinadas células a nosso favor, primeiro apaixonou-se por História e só depois pela Biologia Médica. Chegou mesmo a descartar a disciplina de Biologia antes de entrar para a faculdade, porque não lhe interessava “analisar plantas”. Mas o seu progresso educativo deu-lhe a volta. Como teve de passar do nível B para o A, no ensino elementar, porque aprendia rápido, acabou por ter de voltar à Biologia.

Reforçar o sistema imunitário, compreendendo melhor os linfócitos T – para permitirem proteção de infeções e patologias, com base numa memória celular reativada sempre que essas ameaças voltam. É esse o objetivo da investigação

“Mergulhei na Biologia e comecei a pensar no que realmente queria. Achei que não seria um bom médico, mas como sempre gostei de cruzar conhecimentos, o caminho da investigação tornou-se uma opção”. Hoje, o investigador de 46 anos, no IMM desde 2016, quer saber “como podemos reforçar o nosso sistema imunitário”, mais concretamente o papel das células T [ou linfócitos T, tipos de glóbulos brancos], para nos proteger de infeções e patologias, com base numa memória celular que é reativada pelo sistema imunitário sempre que essas ameaças voltam. Ou seja, o cientista está concentrado numa investigação que nos quer proteger de doenças no futuro.

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É um mistério que Veldhoen – com mais de 90 artigos científicos publicados em conceituadas revistas como a Nature, ou Science and Cell e já mais de 18 mil citações – acredita poder vir a decifrar, porque tem “dados relevantes” sobre como chegar a esse caminho para fins terapêuticos.

Essas células [linfócitos T] ajudam a controlar as respostas imunes”, explicita o editor-chefe da revista científica de acesso público Immunity, Inflammation and Diseases. “Elas são encontradas na corrente sanguínea, viajando através dela para os tecidos que precisam, mas recentemente, observou-se que existem linfócitos residentes em tecidos que não circulam no sangue e que representam um potencial de proteção.”

Só que os mecanismos de ação dessas células ainda são desconhecidos. Por isso, “o estudo quer esclarecer os mecanismos que controlam a manutenção, ativação e função das células do sistema imunitário localizadas nas mucosas, ou que se acumulam nos tecidos como a pele, o sistema respiratório e o sistema gastrointestinal”, para melhorar as terapêuticas de imunoterapia. O objetivo é contribuir para a prevenção de respostas imunes indesejadas que podem resultar em infeções crónicas, alergias, doenças autoimunes e risco aumentado de cancro.

Veldhoen é natural de Deventer, uma das mais antigas cidades holandesas, na província de Overijssel e na margem oriental do rio IJssel, conhecida por ter sido incendiada por vikings e por ter a biblioteca científica mais antiga dos Países Baixos, a Athenaeum. Mas o cientista, pai de dois filhos e casado com uma portuguesa, não se lembrou de referir esse facto na entrevista. Há uma explicação para este lapso de memória relevante: mora há 24 anos fora da terra natal. A ideia era sair por cinco meses. Esteve 19 anos no Reino Unido e está há cinco em Portugal.

O investigador que dorme pouco e gosta de jardinagem sempre foi o mais novo da turma, por causa da data de nascimento, que coincide no mês anterior ao início do ano letivo holandês. Por isso, entrou para a faculdade com 17 anos. “Nessa altura existia uma faculdade de medicina no centro [em Utrecht] que tinha um curso de Biologia Médica, mas o problema era que tinha apenas 80 vagas para todo o país”. Conseguiu entrar e superou a média: não só ficou entre os vinte que acabam o curso, como terminou-o em quatro, quando a estatística persiste nos cinco.

Marc Veldhoen é também professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Tem mais de 90 artigos científicos publicados em revistas como a Nature ou Science and Cell. Membro do Conselho Editorial da European Journal of Immunology, é editor da revista científica de acesso público Immunity, Inflammation and Diseases

“Naquele tempo, o governo pagava para estudarmos e, como os meus pais não ganhavam muito, obtive uma bolsa de estudos por cinco anos, apesar de o programa curricular ser de quatro”. Aproveitou o último ano da bolsa numa viagem que lhe mudaria a vida. “Recordo-me de ter tido um professor de Genética que era Inglês. Nas aulas dele algo se perdia na tradução, pois ficávamos com a mente ocupada a processar essa informação e percebi que tinha graves lacunas na língua, logo, pensei: uma das formas que tenho de aprender Inglês é ir para Inglaterra e fazer lá o estágio.” Foi em 1998.

Seguiram-se um Doutoramento em Imunologia Molecular, no National Institute for Medical Research, no Reino Unido, e um Pós-Doutoramento no Mill Hill Laboratory, investigando a diferenciação celular de linfócito T auxiliar. Em 2010, fundou o seu próprio laboratório no Babraham Institute, em Cambridge, para estudar essas células nas mucosas. Em 2016, foi contratado como investigador no IMM para prosseguir esses estudos: “investigar a função das células do sistema imunitário na iniciação, modulação e resolução da resposta imune nos tecidos epiteliais, bem como na regulação da homeostase das células epiteliais”.

Dois anos depois, candidatou o projeto sobre as células T à Fundação “la Caixa”. Foi rejeitado. Submeteram-no de novo em 2019. “É o dia a dia da tentativa de sobrevivência dos cientistas: elaborar projetos de investigação”, submeter, e, enquanto se aguarda por respostas, “elaborar mais projetos para garantir financiamento para os laboratórios e para dar continuidade aos projetos”. Dessa vez, a aprovação veio com um financiamento de 500 mil euros até 2022. Da equipa do projeto de investigação aprovado pela “la Caixa”, além de Veldhoen, fazem parte, atualmente, os investigadores de pós-doutoramento Cristina Ferreira e Silvia Ariotti, os doutorandos Patrícia Campos e Leandro Barros, a par de Sofia Ribeiro (gestora do laboratório).

“A nossa ideia é saber como reforçar o sistema imunitário. Se formos vacinados, uma das leituras que temos é, através de uma amostra de sangue, poder observar os glóbulos brancos a responder à ameaça a que fomos vacinados.” Só que esta é apenas “uma parte da história”, garante, elevando as sobrancelhas, como quem mantém o suspense.

Há cerca de dez anos descobriu-se que esses glóbulos brancos, chamados de células memória, e que são tão importantes quando somos vacinados, não estão apenas a circular no nosso sangue. “Há uma população específica destas células que está nos nossos tecidos, também, e isso é toda uma outra história”, reflete o imunologista, que chegou a criar unidades de serologia para o hospital de Santa Maria, no pico da pandemia por SARS-CoV-2, para ajudar os colegas médicos do IMM a aumentar a capacidade de diagnóstico.

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Para Veldhoen, hoje responsável pela gestão de projetos de pesquisa nesta área no IMM, investigar estas células nos tecidos é relevante para melhorar as respostas imunitárias. “Como são feitas? Como as mantemos lá? Como as reativamos?”, problematiza. Depois acresce, num tom cerimonioso: “há muitos segredos obscuros nesta área e, em Imunologia, nós sabemos fazer vacinas, sabemos os benefícios, mas há muitos detalhes que ainda desconhecemos e um deles é como as células memória são exatamente geradas”.

Na prática, é como se essas super células protetoras que já combateram infecções e patologias não levantassem a guarda, ficando hibernadas para sempre, numa espécie de vigília – ou por um longo período de tempo – nos tecidos outrora ameaçados e, no caso de haver nova infecção, voltam ao ataque.

Veldhoen é professor de Imunologia Básica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e trabalha em células T há 24 anos. Desde 1995 que se sabe que existe um subconjunto de células T reguladoras que são realmente importantes porque suprimem outras células. “Se não as tivermos, ficamos com imunidade enfraquecida, e se nascermos com imunidade enfraquecida não vivemos muito tempo. No máximo dois anos, e isso diz muito sobre o quão importante são essas células.”

Mas, como todas as células no sistema imunitário, elas também têm uma consequência negativa, ressalva. “Porque se quisermos ver-nos livres de um tumor, estas células não são benéficas, aliás estão no meio do caminho. Ou, se realmente quisermos ter uma boa vacina, pensa-se sempre que essas células não deveriam estar ali, porque amortecem a resposta imunitária”, elucida. Isso dependerá sempre do tipo de patologia e do tipo de vacina.

Ao que parece, essas células fazem muitas outras coisas que muitos cientistas têm vindo a investigar. O imunologista, o qual tem uma conta de twitter com mais de dois mil seguidores para comunicar ciência, tenta traduzir a história da importância dessas células T e as implicações da investigação.

Graças ao financiamento de 500 mil euros da Fundação “la Caixa”, a equipa liderada por Marc Veldhoen poderá trabalhar no projeto até 2022. Boa parte da vida de um cientista passa por isso mesmo: procurar novas fontes de financiamento para prosseguir a investigação

“No nosso caso, estão na verdade a ajudar as células a ser ativadas a ir ao tecido para amortecer a atividade, por isso tornam-se células memórias, o que significa que, naquele momento, estão a assegurar que não há danos no tecido, ao mesmo tempo que estão a assegurar que existe uma população [de outras células] com memória”. Ou seja: se encontrarem a mesma bactéria, ou o mesmo vírus novamente, “já têm essas células memória prontas no tecido, onde provavelmente encontram o mesmo patogeno”. Isto é “muito inteligente”.

Como essas células estão integradas nos tecidos, os cientistas não podem simplesmente retirar uma amostra para “uma placa de Petri”, para fazer a cultura de microorganismos. No ecrã do computador, Veldhoen explica a metodologia de análise, ativando um pequeno vídeo: vemos uma pequena célula redonda num grande núcleo, e o movimento de uma ramificação com fosforescência verde, e que corresponde a uma amostra de tecidos de um ratinho.

“Usamos microscopia ótica e aqui observamos os tecidos dessas células memórias, identificadas a verde. A azul estão os tecidos epiteliais, um pedaço de pele. Neste caso, usamos a pele porque é mais fácil de aceder, em ratinhos vivos.” Depois, outra das técnicas utilizadas é citometria de fluxo, um processo que analisa as características físicas e químicas de células isoladas.

O que Veldhoen e a equipa estão a observar é que as células tocam constantemente em todas as outras células epiteliais. “E claro, por meios moleculares, elas fazem a pergunta: “Estás bem?” Sim? Se não, partem imediatamente para a ação”.

Saber como este processo pode ser desencadeado é, ainda, um segredo bem guardado do sistema imunitário. “Pensemos no caso do cancro: a nossa ideia é focarmos na imunoterapia. E se pudermos fazer com que as células T tenham propriedades de um tecido como uma célula memória?”, aponta. “Elas devem ser capazes de penetrar profundamente num tumor e, com efeito, ser mais benéficas nessa erradicação. Se vai funcionar, não tenho ideia, mas esse é o próximo passo em que estamos a pensar como possibilidade e temos já dados interessantes.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Enhancing Tissue Resident Immunity, liderado por MarcVeldhoen, do IMM, foi um dos 25 selecionados (6 em Portugal) entre 632 candidaturas – para financiamento pela Fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2019 do Concurso Health Research. O investigador recebeu 497 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerram a 25 de novembro.