Era o primeiro dia do ano em que já saímos do escritório de noite, a chuva tinha-se instalado há dias na cidade para que não restassem dúvidas de que esta é mesmo a hora de inverno e era preciso arranjar qualquer coisa para fazer para esquecer que o Benfica ia jogar a Munique. Contar trotinetes em contramão, vermelhos passados por entregadores de comida, qualquer coisa. No contexto, um concerto de Gilberto Gil era mais do que um luxo cultural: era um acto de misericórdia. E, para nós em particular, o regresso a uma grande sala de espectáculos depois de ano e meio de deserto pandémico.
Mas a hora do concerto era tardia, os motoristas da Uber tornaram-se mais raros e falíveis do que os pontas-de-lança vocês-sabem-de-quem e a fila para o Coliseu chegava ao D. Maria porque, bilhetes à parte, é preciso mostrar o certificado digital à entrada e há quem precise de tirar um pequeno curso de informática ali mesmo primeiro que o encontre. Lá se passava por uma televisão de um restaurante, ouvia uma reação, cruzava com uma informação no telemóvel – e aquilo de que não queríamos ouvir falar falava por toda a parte.
Gilberto Gil. Um músico tão grande e dois laterais tão… Bom, e portanto, perto das 22h, lá começou. Tudo sentado, na sala e no palco, para a primeira de duas noites de concerto esgotadas em Lisboa (como esgotaram os de Vila Real, Castelo Branco e Braga). Gil, 79 admiráveis anos, toca acompanhado pelo baterista Marcelo Costa e pela família: os filhos Bem Gil e José Gil, um na guitarra e coros, outro na percussão, e os netos João Gil, guitarra, e Flor, uma menina de 13 anos que, de vez em quando, vai deixar as teclas para vir assumir o microfone e a as atenções.
Não se pode dizer que têm feito muito por evitar a sombra do avô: José e João têm uma banda com outro membro do clã, Francisco, chamada Gilsons. E Flor lançou no ano passado o primeiro EP: “Gil e Flor: De Avô pra Neta”. Ainda assim, é justo que se diga: João, com a sua alegria e virtuosismo, e Flor, na doçura, serão duas das estrelas da noite. Tal como Adriana – essa da família Calcanhotto – que tem acompanhado a tour europeia e há-de vir para algumas canções.
É um serão de clássicos: “Chiclete com Banana”, “É Luxo Só”. Flor vem cantar uma versão quase infantil de “Volare” e “I Say a Little Prayer”, de Burt Bacharach. E rezamos, por Odysseas, por Yaremchuk, até pelo Dínamo de Kiev. Vamos a “Drão” e é a maior ovação até aqui. “Uma semente de ilusão”, “Dura caminhada / pela estrada escura”. Damos por nós naquela coisa meio ridícula de cantar dentro da máscara FFP2 e nos novos sentidos que aqueles versos adquirem.
O Coliseu, grato desde o instante -1, grita “Fora, Bolsonaro”, aplaude tudo, ri de toda a história contada, sempre naquele mesmo tom de sábio ancestral, por Gil. Há uma irrequietude de novidade, uma excitação de regresso, uma alegria de vida reencontrada, que leva alguns a suporem que durante selfies, vídeos e diretos, podem tirar a máscara porque o vírus talvez não goste de ser filmado.
A entrada de Adriana Calcanhotto, em todo o caso, dá-lhe novos motivos de júbilo. Começa por “A Paz”, o genial tema de Zizi Possi (“Que contradição / só a guerra faz / nosso amor em paz”), “Elogio”, que escreveu para Gilberto a propósito do dia em que se conheceram, e termina com “Esquadros”, no que é acompanhada pela sala, depois de já ter desabafado: “Tive medo de não voltar a poder dizer isto: ‘Boa noite, Lisboa”.
E quando estávamos convencidos de que já nos tínhamos esquecido de que, algures nessa Europa desenvolvida, podíamos estar a levar tareia como gente grande, Gilberto levanta-se pela primeira vez, pondo em evidência o fato num rosa suave bem parecido com o de um equipamento alternativo que certa e determinada agremiação usou aqui numas épocas há atrasado.
Falamos de racismo. Já tinha passado pelo “Upa Neguinho” de Edu Lobo; agora, recorda Harlem Désir e a S.O.S. Racismo, vamos a “Touche Pas à Mon Pote” e “Sarará Miolo” (“sara / cura / dessa doença de branco / de querer cabelo liso”). Fala dos anos do exílio com Caetano em Londres no tempo da ditadura, a sala insiste em comprar com Bolsonaro, mas Gil não devolve mais do que um “pois é”, celebrado como um golo que Everton Cebolinha provavelmente não estava a marcar àquela hora. Voltamos à história e a “Back in Bahia”. João Gil brilha no solo, Flor volta para cantar “No Norte da Saudade”.
O final é em crescendo e ao colo de “Andar com Fé” (“a fé não costuma falhar#, insiste o nosso homem), o inevitável “Aquele Abraço”, que dedica ao povo brasileiro em Lisboa, o reggae de “Stir it Up”, a grandiosidade de “Tempo Rei”. O povo chama para o encore, Gil volta com Adriana e mais ninguém se senta. “Fico Assim sem Você”, “Madalena”, “Toda Menina Baiana”. A sala pula e dança naquele ainda estranho baile de máscaras nada festivas, que embaciam, apagam sorrisos, qualquer hipótese de estilo ou confiança numa troca de olhares. Mas que o povo estava com vontade de saltar, estava. Só não sei se esta alegria é saudade ou Brasil. À saída, as vozes nas conversas confirmam a presença significativa de imigrantes desse outro lado do rio Atlântico. No Uber para casa, é inevitável procurar notícias de Munique: 5-2. Alô, torcida do Flamengo. Aquele abraço.