Título: Duas Solidões: o romance na América Latina
Autores: Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa
Editora: Dom Quixote
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Páginas: 176

É um resquício da voz de García Márquez que nos chega após o túmulo. Em Duas Solidões, um futuro Nobel está em frente a outro. Em 1967, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, que já começavam a erigir os seus impérios literários, encontraram-se em Lima para discutir a literatura latino-americana. O primeiro já via o seu Cem Anos de Solidão voar-lhe das mãos para o mundo. O segundo acabava de receber o Prémio Rómulo Gallegos.

Este livro é o resultado desse encontro, que, tendo dois génios frente a frente, é mais uma entrevista de Vargas Llosa a García Márquez. Os dois têm maneiras diferentes de ver o mundo e a literatura, numa altura em que a produção latino-americana começava a conquistar leitores e a afirmar-se como coisa a sério, e não como literatura periférica. Entre outros temas, os dois autores falavam de realismo, numa altura em que ainda era demasiado cedo para que o realismo mágico tivesse um nome. E García Márquez insistia na sua definição de escritor realista, considerando que a fantasia que Vargas Llosa via na sua obra era, afinal, uma parte intrínseca da realidade latino-americana.

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É engraçado, porque o peruano via que em Cem Anos de Solidão havia “coisas muito surpreendentes: há tapetes voadores que passeiam as meninas por cima da cidade; há uma mulher que sobe ao céu em corpo e alma; há um casal que faz amor e, no momento de o fazer, propaga a fecundidade e a fertilidade à sua volta; acontecem milhares de coisas maravilhoas, surpreendentes, inverosímeis.” (p. 53), mas o colombiano considerava que era precisamente aí que era “um escritor realista”, porque achava que “na América Latina tudo é possível, tudo é real” (p. 57).

Ao longo da entrevista, vamos vendo as duas formas de olhar para a criação literária. Se para Vargas Llosa tudo é do domínio do racional e planeado, para García Márquez a literatura vem beber às coisas quase sem querer, e só impressiona porque a vida é impressionante. O que num é calculismo, noutro é espontaneidade. Contrapõe-se um Vargas Llosa analítico, senhor das suas decisões, metódico, racional e consciente, a um García Márquez que parece indiferente aos ofícios da crítica ou da teoria e que apresenta a literatura como uma coisa natural. De um lado, um defensor do método; do outro, quase uma gravidez da literatura. Por vezes, parece que as frases de García Márquez servem para se fundar enquanto mito, ainda que reitere que demorou a escrever Cem Anos de Solidão porque, mesmo tendo a história delineada, não foi fácil afinar o tom.

O conteúdo do livro acaba por não acrescentar muito ao que já foi escrito no colossal Viver para contá-la, livro de memórias em que García Márquez foi deixado os traços gerais da sua vida e da relação que tinha com a literatura. Ali, pode ver-se que a literatura não sai sem querer das mãos, segue-se o percurso de um escritor que se fez com estudo e prática, nunca cedendo às tentações de se desviar do caminho e mantendo-se nele apesar de todas as dificuldades: o tempo, o dinheiro, as distracções. Também em Duas Solidões García Márquez insiste na escrita como actividade primária para um escritor, dizendo que é encará-la dessa forma que a permite. Com isto, o autor colombiano contrariou a tese do boom de leitores, dizendo que houve antes um boom de escritores. Teria sido a qualidade dos novos romancistas latino-americanos a puxar os leitores para a nova literatura que se formava e internacionalizava.

Aprende-se lendo, trabalhando, sobretudo sabendo uma coisa: que escrever é uma vocação exclusiva, que tudo o resto é secundário; que a única coisa que queremos é escrever.” (p. 68)

(…) tudo cria dificuldades ao escritor, toda a atividade secundária. O que a pessoa quer é ser escritor e tudo o resto a estorva, e desagrada-lhe muito ter de o fazer, ter de fazer outras coisas” (p. 69)

As melhores horas, as horas mais repousadas, há que dedicá-las à literatura, que é o mais importante” (p. 72)

Em 2021, o grande interesse do livro será a cristalização das posições dos principais propulsores da internacionalização da literatura latino-americana no momento dessa propulsão. Quem seguiu o fio à meada entre os dois pode julgar distantes os tempos em que os dois autores foram amigos, e agora não há como olhar para o passado sem conhecer o presente, sem uma avaliação do que foi a literatura de um e de outro e do impacto que ambas tiveram no fortalecimento da literatura latino-americana.