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Sejamos loucos com Gisela João: uma noite com um Coliseu a seus pés

Este artigo tem mais de 2 anos

Podem chamar-lhe tudo: louca, complicada, exagerada, tudo ou nada. Quem diz é quem perde. No Coliseu de Lisboa, esta 6ª feira, o que vimos foi a voz de uma época. E, já agora, a canção do ano.

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O concerto estava no final e Gisela João já saíra e regressara para o encore. Porque nisto dos encores, é bom lembrar, o povo é que manda, quando se bate palmas com fervor e se martela o chão com os pés é preciso que a música continue.

Gisela João já cantara três temas depois de ameaçar ir-se embora de vez. Depois de “Tempestade”, de um disco de grupo que está para sair, atirara-se a “La Llorona”, velha canção clássica latina. E dissera depois “agora sim, até uma próxima”, antes de cantar “Antigamente”, velho fado corrido de Manuel de Almeida.

O público levantou-se então pressentindo o fim, ovacionou-a de pé e nós, sentados na cadeira, só pensávamos que espera lá, não há nada de errado com “Antigamente” mas está a faltar aquela.

“Aquela” era o single do disco novo, o álbum lançado este ano que, como se diz na gíria, levou Gisela João a regressar aos Coliseus. Como se diz na gíria porque, enfim, Gisela João não precisava de AuRora para voltar aos Coliseus. AuRora, o disco, é quanto muito o cheiro a café que nos leva a parar na rua para entrar e pedir uma bica, o aroma a pão acabado de sair do forno que nos lembra que já temos fome há umas horas (e que gostamos muito de pão).

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Acontece que aqui também tínhamos fome de tudo isto. Por um lado, de uma sala com a imponência majestosa do Coliseu dos Recreios, operática e já mais do que centenária, sonhada ainda no século XIX por quatro homens que imaginaram que podiam criar em Lisboa a maior sala de espectáculos coberta do mundo daquela época. Por outro lado, tínhamos fome de um concerto destes: de uma grande artista, portuguesa ainda por cima, fadista ainda por cima.

Não se leia por aqui qualquer menorização de AuRora, o disco novo — e aquele que confirma o que sabemos desde o primeiro lançamento, Gisela João, de 2013 (é verdade, já saiu há oito anos, estamos velhos, vocês conhecem a lenga-lenga): que Portugal e o fado ganharam na última década uma voz definidora de uma época.

Há sete meses, quando a entrevistávamos, escrevíamos assim (perdoem-nos a auto-citação) sobre AuRora, enlevados por este novo fado que é novo porque é só seu: “Há álbuns como este, que fazem um ouvinte querer levantar-se da cadeira, dizer mentalmente ‘vamos à vida, caramba!’, ser tomado por uma força que vem de encontrar um som que ainda estava por descobrir, uma canção que ainda ninguém ouvira mas que só poderia ser escutada assim, com este arranjo, com este timbre, com esta voz, com esta melodia“.

Não retiramos uma vírgula mas voltemos “àquela”, que ainda faltava ao concerto como uma cereja ao topo de uma gulosice: parece-nos (as palmas…) que Gisela João disse afavelmente às pessoas para voltarem a sentar o rabo na cadeira que isto ainda não acabou. De seguida, disse às pessoas que nunca ligou a géneros, pessoas são pessoas, mas notou um detalhe: “Nasci mulher”. E por isso, dizia ela, sabia bem “o que custa ser mulher”. Depois, dedicou isto “a nós todas, as loucas deste mundo”.

O que se seguiu foi uma cantiga estupenda, entoada por uma voz que só pode ter nascido para cantar — e por uma mulher fadista-artista que mostrou ter uma lucidez rara, pegando num tema universal, ainda atual e que mexe com tantas entranhas, e cantando-o visceralmente. É como se Gisela João, nesta canção, estivesse a ser recetáculo das frustrações e das raivas acumuladas dia após dia por todas as mulheres que já se sentiram menorizadas por terem nascido mulheres. E, recebendo essas frustrações, as moldasse depois com uma carga que não é descontrolada (histéricas o caraças!) mas convicta, segura, incisiva como uma chapada que nos volta a deixar sóbrios.

Na canção, Gisela João chama os paternalistas pelos nomes: a quem diz que é “exagerada”, “complicada”, “a louca”, “tudo ou nada”, lembra: “Não sabes nada de mim”. Mas fá-lo com muito mais drama e pathos do que estas linhas sugerem. Naquela voz rouca está tudo o que leva a que alguém, na cadeira ao lado, nos sussurre: “Ser mulher é f…”. Perdão, “é tramado”. À falta de vídeo, o mais próximo que podemos apresentar é a atuação recente na plataforma Colors: quem terminar sem pelos dos braços eriçados está condenado à insensibilidade eterna.

Este momento, o final, faz-nos escrever aqui que “Louca” é a canção do ano. Não importa se é, claro que não ouvimos as canções todas do mundo e esta temo-la fresca na memória, mas isso não interessa nada: hoje, depois deste concerto no Coliseu dos Recreios, “Louca” é a canção do ano, a “Under the Table” (Fiona Apple) de 2021 versão fado. Amanhã? Logo se vê.

Antes de tudo isto já víramos Gisela João a ser Gisela João. Há alguns detalhes — alguns trunfos — nas suas interpretações ao vivo que se replicam, como é natural, das gravações ao vivo. Um deles é a escolha criteriosa de acompanhamento, músicos no piano (que casa muito bem com o fado) e nas mais tradicionais guitarra, viola e baixo que sabem o segundo exato que cada nota deve durar. Um fadista, sem isto, não deixa de ser um grande fadista: mas é um fadista coxo para se apresentar nestes palcos.

Outro segredo é o bom gosto dos arranjos: saber-se exatamente que tipo de nuances novas e pequenas inovações se podem introduzir no fado sem o descaracterizar, que ele já é tão rico (e tem tantas variantes) que dá para quase tudo. E outro trunfo, ainda, é a utilização do aparelho vocal e a canalização da emoção para o canto: as variações súbitas da emoção a transbordar, o corpo todo em convulsão a cantar libertando-se das dores que a vida também tem, para a contenção, diríamos quase para um estilhaçar racional da emoção.

Notámos isto ao longo de um concerto que começou a respeitar escrupulosamente AuRora, o disco novo, até pela ordem com que os temas eram cantados: primeiro a etérea “Tábuas do Palco I”, que arranca o álbum, depois “Já Não Choro Por Ti”, uma grande canção com letra de Jorge Cruz (ex-Diabo na Cruz) que se lhe segue no disco.

Concerto de Gisela João no Coliseu dos Recreios. 6 de Novembro de 2021, Lisboa. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Rapidamente o cenário era desvendado: Gisela João sentada (levantar-se-ia algumas vezes durante o concerto), a imagem de uma floresta atrás (uma “floresta encantada”, assim lhe chamaria a fadista), um pianista de um lado e os três músicos da guitarra portuguesa, baixo e viola sentados do lado oposto, à esquerda de Gisela João.

Depois do par de temas inaugural, Gisela João dava as boas-vindas e explicava ao público que o que se ouviria era, no fundo, uma só coisa: “São tudo histórias de amor”, porque afinal “andamos nesta vida por causa do amor, andamos sempre à procura disso em tudo o que fazemos”.

Não contradizemos, avançamos antes para o terceiro tema do disco novo, “Canção ao Coração”, o primeiro que Gisela escreveu, compôs e mostrou ao mundo e um daqueles em em que melhor vemos essa oscilação permanente da fadista (e das suas canções) entre a quietude e a melancolia, por um lado, e a força e emoção fadista a ribombar bem alto, por outro. Nunca é exibicionismo vocal, até porque não soa a algo cantado para mostrar os enfeites e dribles vocais. A voz serve quase como uma tradutora de estados emocionais. E nisto dos estados emocionais, sabemos todos, temos todos cá dentro as nossas montanhas-russas.

Até aqui só falámos de uma Gisela João de fado sério, profundo, de algum modo grave, mas é claro que não é só isso: também há dança em “Longe Daqui”, uma fadista a pedir palmas (é verdade…) e a parecer uma catraia feliz. Seguiu-se “Madrugada Sem Sono”, a canção que Jorge Cruz ouviu e a que quis responder com “Já Não Choro Por Ti”, e de novo a festa a regressar com — “vejam lá se adivinham, quem é que aposta qual é?” — “Senhor Extraterrestre”.

Era uma boa altura para fazer uma pausa, enaltecer a música instrumental e sem voz que Gisela João diz que é a que mais ouve e a que mais lhe permite “sonhar”. Eis que Gisela deixava os “muchachitos” sozinhos no palco, o piano a arrancar belissimamente, a guitarra portuguesa e suas amigas a entrar logo a seguir.

Concerto de Gisela João no Coliseu dos Recreios. 6 de Novembro de 2021, Lisboa. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Concerto de Gisela João no Coliseu dos Recreios. 6 de Novembro de 2021, Lisboa. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Concerto de Gisela João no Coliseu dos Recreios. 6 de Novembro de 2021, Lisboa. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Concerto de Gisela João no Coliseu dos Recreios. 6 de Novembro de 2021, Lisboa. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Foi com “Não Fico Para Dormir” que Gisela João voltou ao disco novo — e a um fabuloso arranjo de piano — e foi também aqui que se emocionou, lembrando que um artista está habituado a andar de um lado para o outro, de carrinha em carrinha ou de voo em voo. Mas na pandemia, lembrava a fadista emocionada, “ficámos sempre para dormir”, pelo que a música acaba dedicada a “toda a gente que aguenta os cavalos e trabalha no setor da cultura”, que trabalha “na base do desenrasca, do inventar e do ‘bora sair desta’” e depois fica à mercê de quem se aproveita disso.

Ainda se haveriam de ouvir “Malhões e Vira”, primeiro, depois uma canção recente que Gisela João compôs para dar voz à prevenção contra o cancro da mama — “estejam atentos ao vosso corpo” — e uma irónica e muito aplaudida “Hostel da Mariquinhas”, a apontar a uma Lisboa aturistada de cocktails, tuk-tuks e comida gourmet, cantada com a ajuda da letra no ecrã do telemóvel. Isto tudo antes da fadista dizer que lhe apetecia “cantar outra música” que “também não está no alinhamento, nem é portuguesa, mas eu canto o que eu quiser, olha… também é assim nas casas de fado, um gajo diz ‘olha, é aquela’” e siga”.

A canção que Gisela João queria cantar era “Atrás da Porta”, escrita por Francis Hime e Chico Buarque e que Elis Regina cantava. Tema que esta sexta-feira, no Coliseu dos Recreios, a fadista interpretou de forma imaculada em capacidade vocal e emocional mas sem conseguir contornar a estranheza inevitável que causa ouvir um português a cantar com sotaque brasileiro. Valeu também pela forma como foi apresentada, pelo apontamento de que “também há beleza na tristeza”, numa canção sobre “alguém que chega ao pé de outra pessoa e diz que tudo acabou” mas o que mais marca o outro é “o olhar de adeus”.

Depois de mais um vira, eis “Meu Amigo Está Longe”, o fado que Gisela João interpretou logo no seu primeiro disco e que assume ter sido o tema que a “deu a conhecer às pessoas”. Pudera, vão lá ouvir como Gisela João pegou num clássico temido — a versão de Amália, no espantoso disco Cantigas de Uma Língua Antiga (1997), pode parecer definitiva — e o honrou. Interpretação terminada, “muito obrigada, até à próxima, vemo-nos por aí” e um primeiro adeus com “Bailarico Saloio”, também repescada ao repertório eternizado por Amália em que Gisela se aventurou no seu primeiro álbum.

Concerto de Gisela João no Coliseu dos Recreios. 6 de Novembro de 2021, Lisboa. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Só não estava feita a noite porque faltava, voltemos atrás, o encore, a canção do ano desta noite. E uma canção de um álbum em vias de ser editado, gravado por vários músicos de renome convidados por Justin Stanton (o namorado norte-americano da cantora e músico dos Snarky Puppy), um grupo de que Gisela João faz parte. O tema chama-se “Tempestade”, tem letra de Jorge Cruz e, não fosse “Louca”, arriscávamos escrever que era a canção do ano. É assim, culpa de Gisela que tudo no Coliseu dos Recreios levou. No próximo sábado, 13, há-de ser tudo isto e ao mesmo tempo tudo irrepetível, que o grão da voz nunca é maquinal, exatamente igual. O local: Coliseu do Porto.

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