Apenas uma em cada 10 famílias deslocadas em Cabo Delgado tem uma alimentação aceitável, revela um estudo esta quarta-feira divulgado, que alerta para o efeito que conflito, seca e pandemia tiveram na disponibilidade de alimentos naquela província moçambicana.

Realizado pela organização não-governamental Ajuda em Ação, presente na província de Cabo Delgado desde 2016, e pelo Instituto de Estudos sobre Conflitos e Ação Humanitária (IECAH), o relatório faz uma análise da insegurança alimentar naquela província, que desde 2017 é aterrorizada por ataques de rebeldes armados, alguns dos quais reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.

O conflito já provocou mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 817 mil deslocados, o equivalente a mais de um terço da população da província, de acordo com as autoridades moçambicanas.

Esta situação de violência, associada a fenómenos meteorológicos extremos e à pandemia de Covid-19, “reduziu de forma alarmante a disponibilidade de alimentos em Cabo Delgado” no último ano e desencadeou uma “situação humanitária terrível”, escrevem os autores do relatório agora divulgado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em entrevista à Lusa, o diretor da Ajuda em Ação em Moçambique, Jesus Marty, disse que o estudo confirma o que se sente no terreno e reforça a ideia de que os conflitos, “sobretudo conflitos como estes, em comunidades que já apresentam vulnerabilidades alimentares”, têm efeitos na insegurança alimentar.

Com base em inquéritos a 1.045 famílias e mais de 5.000 pessoas vulneráveis, o estudo recorre a uma metodologia usada pelo Programa Alimentar Mundial (PAM) para avaliar a segurança alimentar em casos de emergência, que classifica o estado da segurança alimentar de cada família como “pobre”, “no limite” ou “aceitável”, consoante a frequência com que cada tipo de alimento é consumido.

Segundo as conclusões, globalmente 60% dos agregados familiares inquiridos em Cabo Delgado têm uma situação de segurança alimentar “pobre” e 27% “no limite”, sendo que apenas 14% dos agregados familiares têm um estatuto de segurança alimentar “aceitável”.

A situação é ainda mais grave no caso da população deslocada, privada dos seus próprios meios de subsistência nas áreas de acolhimento.

Neste grupo, 90% dos agregados têm uma segurança alimentar inaceitável (seja pobre ou de risco) em comparação com 72% dos agregados familiares locais.

A percentagem de famílias com fraca segurança alimentar entre as famílias deslocadas (66%) é praticamente o dobro da das famílias locais (34%), conclui ainda o estudo.

Além disso, entre os agregados familiares deslocados, aqueles que estão em centros de realojamento — apenas 4% do total — revelam uma alimentação pobre em 27% dos casos, contra 61% nas que se encontram em abrigos ou outros locais.

Cerca de 81% das pessoas deslocadas são alojadas em casas de família ou de amigos.

Um terço das famílias inquiridas alojou-se em habitações partilhadas entre vários grupos familiares, alguns com mais de 10 pessoas, e no máximo até 26 pessoas, a viverem juntas.

Segundo o relatório, este grande afluxo de deslocados exerce uma enorme pressão sobre os já escassos recursos das famílias de acolhimento, nomeadamente em termos alimentares.

À Lusa, Jesus Marty ilustrou a situação: “Se a uma casa com recursos muito limitados se passa de sete habitantes para 14 ou 20… Se em famílias que já tinham problemas de acesso a alimentos e água, cuja produção agrária é mínima, o suficiente para o autossustento ou em alguns casos nem isso, se se multiplica por dois, o efeito é… é complicado”.

O estudo conclui ainda que, nas famílias que estão há mais tempo deslocadas, a insegurança alimentar é pior do que nas que chegaram há menos tempo, o que indica que a situação das pessoas deslocadas internamente se deteriorou com a passagem do tempo.

Segundo o relatório, a escassez de alimentos é a maior preocupação para quase 100% dos agregados familiares inquiridos, tanto locais como deslocados, seguida da falta de meios de produção agrícola, acesso a habitação digna e água potável.

Os autores do estudo sublinham que os resultados desta análise “revelam a magnitude da crise alimentar e salientam a fragilidade crónica dos sistemas alimentares e dos meios de subsistência nas comunidades de acolhimento”.

Em declarações à Lusa, Beatriz Abellan, investigadora do IECAH, afirma que o relatório mostra que “existe uma situação de emergência alimentar em Cabo Delgado” e apela à intervenção dos países doadores e das agências humanitárias para que reforcem a ajuda e respondam ao apelo de financiamento das Nações Unidas para uma assistência duradoura.

“Pensamos que não se deve ter uma visão de curto prazo e dar apenas um kit de alimentos, mas sim pensar a longo prazo, fortalecer o sistema agrícola, melhorar o cultivo, fazer planos que sejam resistentes à vulnerabilidade climática, (…) porque a situação piorou, mas vai piorar mais ainda“, afirmou.