Wes Anderson sempre quis fazer um filme francês e outro sobre a revista The New Yorker. “Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun”, passado na França dos anos 50 a 70, na redação do “The French Dispatch”, o suplemento de domingo do diário americano Evening Sun, publicado em Liberty, no Kansas, e situada na cidade fictícia francesa de Ennui-sur-Blasé, é, segundo o próprio, “o beijo” entre estas duas ideias. É uma fita em episódios, formada por um conjunto de histórias jornalísticas correspondendo a outros tantos artigos das secções da revista, cujo último número está a ser preparado em 1975, após a morte do seu carismático editor, Arthur Howitzer, Jr. (Bill Murray), filho do dono do “Evening Sun”, e que expressou a vontade que aquela fechasse quando ele partisse deste mundo.

[Veja o “trailer” de “Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun”:]

Após uma breve descrição de Ennui-sur-Blasé, do obituário de Howitzer e de um prólogo sobre como andar de bicicleta na cidade por um jornalista-ciclista (Owen Wilson), temos a história a preto e branco de um assassino que está encarcerado (Benicio Del Toro), é um génio da pintura que provocou uma revolução no mundo da arte e está apaixonado por uma guarda que é a sua musa e modelo (Léa Seydoux); uma paródia amável ao Maio de 68, a cores, com Frances McDormand numa jornalista que cobre os acontecimentos e Timothée Chalamet no líder da revolta; e finalmente, um “thriller”, de novo a preto e branco, que mistura gastronomia de nicho e ação policial, com Mathieu Amalric, Steve Park e Jeffrey Wright num escritor e jornalista negro e homossexual moldado sobre James Baldwin.

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[Veja uma entrevista coletiva com Wes Anderson e os atores:]

Em “Crónicas de França…”, e mais do que em qualquer outro filme anterior, Wes Anderson dá rédea solta ao seu talento de miniaturista fantasioso, humorista excêntrico e decorador artificioso. “Densidade” é a palavra ideal para o classificar. Densidade de atores (além dos acima referidos, aparecem ainda Tilda Swinton, Adrien Brody, Willem Dafoe ou Elizabeth Moss), densidade narrativa, densidade de referências jornalísticas americanas e cinematográficas francesas (as três histórias principais remetem, respetivamente, para o cinema dos anos 30, para a Nova Vaga com pinceladas da geração de Jean-Jacques Beineix, Luc Besson e Leos Carax, e para o policial da década de 50 – sem falar em Jacques Tati logo no início), densidade de empréstimos a outras artes (animação, banda desenhada, teatro e “design” gráfico), densidade sensorial e densidade intelectual. É atordoante, pasmoso e cansativo. 

O filme parece ter sido montado a partir de um enorme “kit”, como se fosse um diorama animado, multicolorido e frenético, que de vez em quando paralisa em “quadros vivos”. É uma empreitada de uma conceção global, uma complexidade formal, um ludismo referencial e uma minúcia visual estarrecedoras. Wes Anderson cometeu uma proeza de arquitetura visual, um “tour de force” de cinema simultaneamente brincalhão e culto, atarefado e minuciosíssimo, espirituoso e mirabolante. E que dá muito pano para mangas de conversa e discussão depois de o vermos, coisa raríssima nos dias que correm.

[Veja imagens da rodagem do filme:]

No final, e apesar de todo o espectáculo, todos os pormenores, todo o fogo de artifício estilístico, ficamos  com a sensação de que aquilo que “Crónicas de França…” tem para dar e vender em termos de fantasia, visão, engenho e humor, falta-lhe em substância e em vibração humana, o que nunca acontecia nos filmes anteriores do realizador (embora “Grand Budapest Hotel” já tendesse para isto). O mundo em que se desenrola não tem relevo, é um colossal “pastiche”, e as personagens são “cartoons” e comportam-se todas como tal. “Crónicas de França…” é monumental na estética mas minimalista no coração.

Mesmo assim, estamos perante  uma carta completamente fora do baralho nestes tempos de estandardização industrial e raquitismo criativo do cinema americano. E deixa-nos a pensar o que irá Wes Anderson tirar a seguir da sua cartola aparentemente sem fundo.