Estávamos em 2001, o Porto era capital europeia da cultura e borbulhava artisticamente, quando Ricardo Alves e Ivo Bastos se encontraram numa carrinha a caminho de Lisboa e decidiram formar um grupo de teatro. Ricardo colaborava com o Teatro Art’Imagem como técnico, aderecista e encenador, Ivo dava os primeiros passos num grupo amador na Maia, e ambos juntaram-se a Rodrigo Santos, o terceiro fundador da companhia.
“Foi tudo muito inconsciente, mas tínhamos expectativas. Quando pensei em criar um grupo sabia exatamente o que queria fazer, não era apenas para fazer teatro, até porque nem gosto especialmente de o fazer, odeio ensaiar porque sou muito preguiçoso, mas agrada-me contar histórias e ser civicamente ativo. Ter um grupo é uma boa forma de comunicar com as pessoas, partilhar ideias, criar debates e falar das nossas ânsias”, explica Ricardo Alves.
O trio, que se batizou como Palmilha Dentada, assumiu desde o início o humor como linguagem, apostou em textos originais e explorou o teatro absurdo. “Nunca foi nossa intenção criar uma companhia para fazer Shakespeare ou Brecht, mas para fazer os nossos disparates e encontrar gente que goste deles tanto como nós. Por vezes é mais fácil falar de certos assuntos usando o humor como veículo, não é que tudo seja para rir, mas o riso tem sempre esse poder de crítica social e de repensar crenças. O nosso humor é cuidado, inteligente, manipulador e sacana, sabemos bem para onde levar o público”, sublinha Ivo Bastos.
Também o dramaturgo e encenador Ricardo Alves encontra no humor um terreno fértil. “Sempre que pensei em fazer teatro, pensei em fazer humor, para mim é a linguagem mais interessante. Faço parte de uma geração que leu o Astérix e o Lucky Luke, essas referências deram-me estrutura e amor pelo absurdo. É essa a lógica da companhia, usar uma forma de humor diferente em cada espetáculo, não repetindo fórmulas.”
Ainda em 2001 a Palmilha Dentada estreia-se com o espetáculo de rua “Piratas do Fio de Água”, nos Jardins do Palácio de Cristal, e grande parte do percurso é feito em cafés-teatro, onde a interação com o público é privilegiada. O processo criativo nem sempre é o mesmo, mas parte sempre de uma premissa concreta, com muito improviso à mistura. “Normalmente o Ricardo lança uma estrutura escrita, depois os atores habitam o texto e reescrevem-no, muitas das nossas opções nascem no improviso, que pode acontecer inclusivamente em cena”, detalha o ator Ivo Bastos, acrescentando que tudo se resume à vontade de expressar uma mensagem.
“Como ator falta-me sempre qualquer coisa. Até posso estar no teatro nacional, com um super mega texto de Tchekhov, decoro o texto, alguém me veste e me maquilha, vou para o palco e parece que só cumpri uma função. Falta-me aquele lado mais punk de também querer dizer coisas. Aqui posso chegar ao ensaio e dizer: ‘posso entrar nesta cena vestido de urso?’. Claro que nem tudo é permitido, mas tudo é premissa para ser discutido.”
“Somos famosos porque somos teimosos”
Com duas décadas de trabalho, a companhia de teatro é hoje uma das referências no humor. “Sentimos que público gosta de nós, as camadas mais jovens olham-nos com curiosidade e questionam como aguentamos 20 anos sem apoios nenhuns. Também podemos ser uma referência perversa, dando a ideia de que é fácil seguir este caminho, o que não é verdade”, recorda Ricardo Alves, revelando que em 2009 a Palmilha Dentada esteve mesmo em causa. “A falta de apoios financeiros foi mesmo o mais complicado de superar, há 12 anos pensámos mesmo em enterrar isto, mas depois chegámos à conclusão que não era possível porque queríamos continuar a contar histórias, a inquietar as pessoas e a pô-las a pensar.”
Ivo Bastos também rejeita a ideia romântica de que fazer teatro independente sem meios é bom. “Somos famosos porque somos teimosos, nestes 20 anos encontramos sempre formas de fazer teatro, mas ao mesmo tempo tínhamos que fazer 30 mil coisas paralelamente porque não conseguíamos viver apenas disto. A cultura, tal como a saúde ou a educação, são pilares da sociedade e, por isso mesmo, não têm que gerar riqueza.”
O projeto foi nómada desde o primeiro dia, ocupou várias salas da cidade, do Teatro Helena Sá e Costa ao São João, passando pelo Pérola Negra ou o Hard Club, criou pontes, mas o facto de não ter uma morada própria não permitiu voar mais alto. “Tínhamos a necessidade de ter um espaço próprio de apresentação e de ensaio, essa sempre foi uma luta nossa. No Porto há muito poucas salas de pequeno e médio porte, com capacidade para receber entre 50 a 100 pessoas, que sejam minimamente equipadas e que permitam trabalhos mais ou menos elaborados”, afirma o encenador Ricardo Alves.
Este ano a companhia recebeu pela primeira vez o apoio da DGArtes e do programa Garantir Cultura e, assim, conseguirá abrir uma espécie de sede, a que deram o nome de “Lugar”, e apostar numa programação regular ao longo de dois anos. “Esta garagem estava fechada há 12 anos, alugamos o espaço em junho e gostávamos que fosse um palco não apenas para as nossas produções, mas que também acolhesse projetos infantis e artistas emergentes. Os grupos recém formados dificilmente chegam a um Rivoli, os miúdos que saem das escolas de teatro não vão para o São João passado um ano. Faz falta um espaço para fazer essa transição e esse crescimento, nós sentimos essa responsabilidade.”
A abertura do “Lugar”, na Travessa das Águas, 125, acontece esta sexta-feira, às 19h, com um ensaio aberto de “Vicenzo”, uma peça da Palmilha Dentada com estreia marcada para janeiro de 2022, que fala sobre a força da ciência e o poder do populismo, numa retrato fiel ao que temos que vivemos. No sábado é a vez de Tânia Dinis apresentar um filme com peças de arquivo da companhia, contando a história dos seus 20 anos de trabalho. A restante programação contará, para já, com a terceira edição do “Encontro do Conto” e produções da companhia de teatro Musgo.