Em “The Card Counter: O Jogador”, o novo filme de Paul Schrader, o protagonista, William Tell (Oscar Isaac), um veterano da guerra no Iraque que cumpriu pena num presídio militar por torturar prisioneiros em Abu Ghraib e se tornou jogador profissional, veste sempre roupas escuras. Os motéis em que fica são indistintos e cinzentos, mesmo que ele tenha a mania de envolver a mobília em lençóis brancos, as salas dos casinos onde joga e os bares onde bebe são iluminados de forma indiferente, e várias vezes ao logo da fita não conseguimos perceber se é dia ou noite. E há ainda a nuvem muito escura que paira sobre a consciência de Tell, permanentemente assombrado pelas atrocidades que cometeu na tropa.

Além de um filme em que Schrader retoma os temas do peso insuportável da culpa, da necessidade de expiação e da possibilidade de redenção, que atravessam a sua obra de argumentista e realizador, “The Card Counter: O Jogador” é também um estudo em negrume: visual, físico, anímico, mental (há apenas um breve momento feérico no filme). Lúgubre, desolado e tristonho, é um raro “feel bad movie”, e o solitário William Tell o primo direito de outras almas torturadas saídas da pena de Schrader, como o Travis Bickle de “Taxi Driver”, de Martin Scorsese, ou, em filmes seus, o polícia de Nick Nolte em “Confrontação”, o “dealer” narcoléptico de “Perigo Incerto” interpretado por Willem Dafoe, ou o padre de Ethan Hawke em “No Coração da Escuridão”.

[Veja o “trailer” de “The Card Counter: O Jogador”:]

Tell é financiado no jogo por uma mulher, La Linda (Tiffany Hadish), nunca entra em altas cavalarias de apostas e sai das meses quando já viu que ganhou o suficiente. Vive, sente e joga discreta e modestamente, entre ser atormentado pelos seus fantasmas. Um dia, num casino, sai-lhe ao caminho um rapaz, Cirk (Tye Sheridan), filho de um ex-camarada de armas que esteve em Abu Ghraib como Tell e como ele torturou presos e esteve na cadeia. Mas que uma vez cá fora, acabou por se suicidar. Cirk quer que Tell o ajude a matar John Gordo (Willem Dafoe), um civil que orientou os militares naquela prisão iraquiana mas que, ao contrário destes, se safou sem ser punido e agora tem um negócio de segurança privada.

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[Veja uma entrevista com Paul Schrader:]

Só que Tell não quer vingança, quer expiação e perdão. Por isso, apadrinha Cirk, leva-o com ele nas suas voltas pelos casinos, ensina-lhe o básico dos jogos, procura distraí-lo da ideia de matar Gordo, tenta reconciliá-lo com a mãe e convencê-lo a voltar a estudar. O rapaz será assim o instrumento da sua redenção, ao ponto de, numa cena arrepiante no seu ensombrado quarto de motel, Tell sugerir, mala de instrumentos de tortura aberta a seu lado, que lhe vai aplicar o tratamento de Abu Ghraib se ele não aceitar o dinheiro que lhe está a dar para ir ter com a mãe, pagar as dívidas e reentrar na universidade. Mas sendo este um filme de Paul Schrader, nada se vai passar como devia e as coisas vão acabar em vingança e dor em vez de paz e remissão.

[Veja uma entrevista com Oscar Isaac:]

Apesar do meio em que decorre e das dicas que William Tell vai deixando aqui e ali sobre o vinte-e-um, o “poker” ou a roleta, o jogo é secundário no filme. O que interessa ao realizador é a auscultação moral e a reverberação espiritual dos estados de alma e dos atos da personagem principal. Esta fixação de Schrader com as agonias da consciência e a culpa e a sua purgação é por vezes sublinhada a traço grosso demais na fita, que não deixa de ter as suas arestas e fraquezas: os “flashbacks” em Abu Ghraib, filmados com imagens deformadas, resultam grotescos e são repetitivos, e Oscar Isaac é um ator baço, que confunde parcimónia com monotonia.

Mas nestes tempos de cinema tão colossal como impessoal, fabricado em computador, povoado de monstros e super-heróis, desligado da realidade e desencarnado das mais simples emoções, “The Card Counter: O Jogador”, com o seu realismo sombrio, a sua humanidade mortificada, a sua vincada identidade cinematográfica  e as impressões digitais do seu realizador bem visíveis, sobressai como um jogador sério e reservado numa mesa cheia de apostadores barulhentos e estróinas.