São histórias que Karolina Szymańska não consegue afastar da memória: migrantes assustados, exaustos, em hipotermia, após semanas na floresta. Muitos só trazem consigo pequenas mochilas, e nada que se assemelhe a casacos de inverno. Entre uma e outra missões de três dias, Szymańska, membro de uma organização não governamental que tem dado apoio aos migrantes, partilha o testemunho daquilo a que tem assistido no terreno ao longo das últimas semanas. “Para mim, a pior consequência da tensão na fronteira será as pessoas morrerem. Soube recentemente que uma criança de um ano morreu na floresta“, conta ao Observador.

Desde o final de setembro que Szymańska, da organização não-governamental (ONG) polaca Ocalenie, vai para a zona junto da fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia. É lá que se acumulam milhares de migrantes que tentam chegar a território polaco depois de uma passagem pela Bielorrúsia. A equipa de Karolina Szymańska é rotativa, são missões de três dias na cidade fronteiriça de Sokolka. É a base possível, já que ONG e jornalistas não podem entrar na chamada “zona de emergência”, onde milhares de migrantes têm acampado, na tentativa de entrarem na União Europeia.

Um drama humanitário “orquestrado por Lukashenko”. A crise na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia em seis pontos

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A Polónia tem sido firme na intenção de não deixar os migrantes entrar, mas ainda assim alguns conseguem furar a barreira. “Nem todas as zonas da fronteira estão totalmente seladas. Há muita floresta ali”, explica ao Observador Szymańska. Os que conseguem têm um perfil comum:

Estão assustados, com frio, fracos, com medo do que lhes vai acontecer e exaustos, porque foram empurrados oito, nove, dez, onze vezes entre as fronteiras bielorrussa e polaca”, descreve.

São frequentes os relatos de agressão e assaltos, atribuídos a guardas fronteiriços bielorrussos e lituanos. Regra geral, os migrantes não precisam de assistência médica urgente, mas há exceções. “Os meus colegas que estão no terreno tiveram situações há uma semana em que as pessoas estavam muito fracas e em hipotermia e tiveram mesmo de chamar a ambulância. Depende de quanto tempo ficam na floresta. Quanto mais tempo ficam, de mais ajuda precisam”, descreve.

Os migrantes com quem Karolina Szymańska lidou estiveram, em média, duas a três semanas na floresta que separa a Polónia da Bielorrússia, mas há casos de pessoas que ficaram um mês e meio. A maioria vem do Iraque, Iémen, Síria, mas também chegam de países tão longínquos como Cuba. A Ocalenie não sabe como foram parar à Polónia, mas já recebeu pelo menos 12 cubanos.

Não estão habituados à humidade e temperaturas da Polónia. Muitas vezes têm calças de ganga, casacos muito finos, às vezes têm sacos-cama, outras vezes não. Têm pequenas mochilas. Pensamos sempre ‘como é que eles conseguiram ficar tantos dias na floresta com praticamente nada?’”, conta ao Observador.

A Ocalenie ajuda cerca de 30 pessoas por dia, incluindo famílias com crianças pequenas. Mas, mais recentemente, tem notado uma diminuição no fluxo de pessoas que chegam à Polónia.

Na quinta-feira, a imprensa estatal bielorrussa noticiou que já não há migrantes nos acampamentos improvisados, depois de as autoridades disponibilizarem um armazém aquecido para que as pessoas se pudessem abrigar do frio. Um porta-voz dos guardas fronteiriços polacos confirmou à Reuters que o acampamento foi evacuado. A agência AP relata que centenas de iraquianos deixaram esta quinta-feira a Bielorrússia, com destino a casa, abandonando assim a esperança de entrarem na União Europeia.

Migrantes encaminhados na fronteira Bielorrússia com a Polónia

Um cenário comum ao longo das últimas semanas mas que agora parece estar a ser resolvido. Migrantes acumulam-se do lado da Bielorrúsia, à espera de uma oportunidade para cruzar a fronteira para o lado polaco

Milhares de pessoas tentaram atravessar a fronteira nas últimas semanas, com alguns episódios de violência. Na terça-feira, os migrantes foram atingidos com gás lacrimogéneo e canhões de água, depois de terem atirado pedras e tentado forçar a barreira de entrada na Polónia. Pelo menos dez pessoas morreram na zona florestal onde os migrantes estavam acampados, e onde as temperaturas podem chegar a valores negativos.

Apesar de uma aparente acalmia da situação, Karolina Szymańska mantém o receio de uma escalada. “Para mim, a pior consequência da tensão na fronteira será as pessoas morrerem. Soube recentemente que uma criança de um ano morreu na floresta. Tenho receio de que não seja possível chegar até eles para ajudar e que sejam deixados totalmente sozinhos. Quando leio que o governo diz que, se for preciso, vai usar armas, isso para mim é aterrorizador. A narrativa oficial do governo é que são uma ameaça e temos de proteger as nossas fronteiras”, comenta.

Szymańska tem motivos para estar preocupada com um reacender do conflito. Depois da evacuação do acampamento, a situação voltou a agravar-se: a porta-voz dos guardas fronteiriços da Polónia disse à agência AFP que 500 migrantes tentaram entrar na Polónia na noite de quinta-feira, auxiliados pelas autoridades bielorrussas — as mesmas que, horas antes, tinham tirado toda a gente do acampamento na floresta. Na sequência dessa nova investida, a polícia polaca deteve 45 pessoas, por terem atirado pedras contra as autoridades.

A Ocalenie está sedeada em Varsóvia, mas a cada três dias envia uma equipa de quatro pessoas para o terreno. Szymańska já foi em várias ‘missões’ e vai regressar em breve. A polaca diz que inicialmente teve dificuldade em “voltar para a vida normal”.

Agora já consigo gerir, mas no princípio era difícil. A situação em Varsóvia é tão surreal, quando comparamos com o que se passa na floresta. Quando olhava para os cafés cheios de gente, só pensava naquelas pessoas sem qualquer ajuda, é muito esquizofrénico. Pensava: ‘Como é que podem estar aqui sentados a conversar?’. Essa foi a primeira reação, mas temos de continuar, de trabalhar, para conseguirmos ajudar as pessoas”, afirma.

A União Europeia acusa a Bielorrússia de ter intencionalmente causado esta crise ao facilitar vistos e viagens para migrantes do Médio Oriente, incentivando-os a atravessar ilegalmente as fronteiras da Polónia e Lituânia. Minsk nega estar a fazê-lo de forma deliberada.