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Calçada portuguesa: cidade ou lapela?

Este artigo tem mais de 2 anos

Seis autores, portugueses e brasileiros, e o fotógrafo carioca Bruno Veiga assinam um guia e uma história da maneira portuguesa de decorar o chão urbano.

Título: Tapetes de Pedra
Textos: José de Monterroso Teixeira e outros
Fotografia: Bruno Veiga
Design: Heloísa Faria
Editor: Nau das Letras
Páginas: 240, bilingues

Meia década depois de constituir a Associação da Calçada Portuguesa, com vários parceiros institucionais, dos produtores de pedra à Universidade de Lisboa, o Município de Lisboa promoveu a reimpressão deste livro de grande formato e bela apresentação gráfica, inicialmente publicado há dez anos no Brasil, pela 19 Design. Reconhece deste modo ter sido incapaz de fazer obra própria que actualize — e vá além — o livro de 1985 Empedrados Artísticos de Lisboa: a arte da calçada-mosaico de Eduardo Martins Bairrada (resgatando a riqueza do seu levantamento à fieldade visual que o desgraçou), ou deixe pelo caminho um sortido de pequenas e simpáticas publicações sem fôlego e alcance (que a graciosidade do tema faz imprimir com facilidade), a Câmara Municipal de Fernando Medina, apostada em conquistar a classificação de Património da Humanidade para a maneira lusitana de decorar o chão urbano, optou por socorrer-se deste vistoso álbum como trunfo para o fim em vista. Mas por incrível que pareça — na ausência de bibliografia relevante —, esta publicação não chegará às livrarias, pois destina-se em exclusivo a ofertas do Município e dos dois patrocinadores envolvidos.

O brevíssimo prefácio do autarca reduz Tapetes de Pedra a “uma prova do interesse internacional por esta arte tão Lisboeta, mas também universal” (nem tanto; p. 7). É duplamente curto, pois nem esta maneira de calcetar é um exclusivo da cidade, como se pode dizer que foi bem longe de Lisboa que alcançou as suas expressões mais gloriosas. A obra, assinada por seis autores, portugueses e brasileiros, e por Bruno Veiga, fotógrafo carioca actualmente a viver em Lisboa, estrutura-se em quatro capítulos temáticos — “História e memória”; “Meio ambiente e urbanismo”; “Arte e património”; “Difusão e disseminação” — seguidos por um pot-pourri fotográfico que recebeu o sugestivo título de “Tatuagens urbanas”. Corresponde, aliás, ao de uma exposição itinerante que de Belo Horizonte e Recife em 2011 viajou até ao Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, em 2015, com catálogo homónimo (que não existe na nossa Biblioteca Nacional…).

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Tapetes de Pedra também é designação bastante feliz, desde logo para explicitar a influência romana antiga nos modos de construção de pavimentos, quer em vias públicas em pedra granítica quer em dependências domésticas em mosaico figurativo ou de padrão, ainda hoje tão claramente reconhecíveis no complexo de Conímbriga, ou em Pompeia e Herculano. A tradição árabe do ladrilho tão-pouco pode ser subestimada: em Évora, por finais do século XIV, coziam-se ladrilhos com um palmo de largura e dois dedos de espessura para “ladrilhar câmara” (p. 38). No reinado de D. Dinis (1279-1325), a Rua Nova em Lisboa recebeu pavimento em pedra. Monterroso Teixeira dá-nos prova — talvez inédita — de quanto o calcetamento de ruas da capital avançou por determinação de D. Manuel I, que se refere especificamente a “pedra miúda e muito bem feita” (cit., p. 44). No seu famoso Da fábrica que falece à cidade de Lisboa, de 1571, Francisco de Holanda recomendaria pedra preta para “calçadas de que Lisboa está tão descalça”, e mais de dois séculos depois, Ciryllo Volkmar Machado sublinharia a lição clássica, ao descrever no seu Tratado de Arquitectura a configuração das “estradas revestidas a calçada” (glareae stratae) que viu em Roma, na sua visita de estudo: duas laterais por onde carros e animais iam ou vinham, evitando cruzar-se, e uma faixa central, mais elevada, para peões.

Na cidade da Horta, ilha do Faial, por exemplo, em 1826 legislação municipal propunha aos moradores a colocação de ladrilhos em basalto no passeio em frente de suas casas, e no Rio Jean-Baptiste Debret — prudentemente fugido da guilhotina, como tantos outros da suposta “Missão Francesa” que a historiadora de arte Patricia Telles desmitificou — vira c. 1815 calceteiros negros assentando grandes lajes de pedra talhada (desenho, p. 66), além de outros momentos que desenhou (nota p. 94).

Fotografias de Bruno Veiga que fazem parte de "Tapetes de Pedra"

Páteos de palácios, como o da Embaixada de Itália ou o dos Condes de Penafiel (Rua de São Mamede, 21), átrios de igrejas, como a bela capela de Santo Amaro, páteos de honra de quintas apalaçadas, como o Palácio Galveias, ao Campo Pequeno, são exemplos notórios, expostos à vista de todos, mas o requinte decorativo também entrou portas adentro, desenrolando belíssimas composições em átrios privados de edifícios nobres, também recorrendo a seixos rolados, como no n.º 179 da Rua da Madalena e no n.º 1 do Largo de São João Baptista, 1, ao Lumiar, identificados por Bairrada no seu pioneiro trabalho de 1985.

Em meados de Oitocentos, primeiro na parada militar do castelo de São Jorge e depois em toda a Praça de D. Pedro V — com a mão-de-obra de presos no Limoeiro —, surge o afamado modelo de ondas a preto e branco, criação do general Eusébio Pinheiro Furtado (1777-1861) que foi confundida como matriz fundadora da calçada à portuguesa, que terá tido antecedentes amplos e reconhecíveis, que a historiografia de arte agora tenta fazer retroceder à época manuelina, mas sem testemunhos concretos que o colapso de 1755 varreu para sempre. Falta-lhe contudo uma aproximação a outras formas de “arte popular”, ou vernacular, desde motivos em ponto-cruz, camisolas de lã ou toalhas bordadas com os típicos florões às vinhetas tipográficas geometrizadas tão em voga no século XIX, do mesmo modo que falta aproximar a letragem comercial embutida a pedra escura nos passeios aos grandes letreiros pintados a prata ou ouro sobre fundo negro com caracteres garrafais sobre a porta das lojas (aquilo a que gosto de chamar “a cidade tipografada”). Na sua boémia nocturna, o designer Sebastião Rodrigues apreciava sobremaneira os laços do dito “tapete branco” da Praça Duque de Saldanha, elementos que transpôs para alguns dos seus melhores trabalhos gráficos.

Exibição de pavimentos empedrados portugueses chegaria ao pavilhão nacional na Exposição Universal de Paris de 1900 pelo lápis de bico afrancesado de Miguel Ventura Terra, em desenho sobre papel vegetal que se pode ver na p. 76. Depois, como sempre, o viço da moda fez-se sentir. Facto pouco conhecido, creio, Cassiano Branco completou a concepção do seu Hotel Victoria, na Avenida da Liberdade (1934), em art-déco puro, com “notáveis passeios para a entrada”, há muito destruídos (Teixeira, p. 78; encontra-se reconstituição parcial in Bairrada 1985, p. 569). Mas pouco mais se avançou além da repetição insone de modelos antigos, por mais amplo que seja o seu reportório (Bairrada identificou 183 motivos diferenciados). Em 1942 o arquitecto paisagista Francisco Caldeira Cabral atapetou a Largo do Município do Funchal recorrendo a um motivo antigo. O contraste com as realizações da azulejaria moderna revela-se bastante eloquente. Aplicações na urbanização de Olivais-Norte, por exemplo, colheram inspiração tardia na nova arquitectura brasileira. Recriações recentes são tributos simpáticos a uma arte antiga (e até divertidos, como a de Pedro Proença no Parque das Nações em 1998), mas muito pouco vão além disso.

Onde — sem a mínima dúvida, até pela irrepetível beleza do cenário envolvente — tradição e modernidade se conjugaram numa criação inultrapassável foi no calçadão da Avenida Atlântica, Rio de Janeiro, onde duas faixas de obra abstractizante de Roberto Burle Marx (1909-84) correm desde c. 1970 a par do ondulado lisboeta ali adoptado desde 1906 e 1930 (p. 83). É absolutamente extraordinário. Pela primeira vez naquela cidade, ao cromatismo bitonal o encantador Roberto juntou o rosa — solução, aliás, adoptada trinta anos antes na grande Rosa dos Ventos diante do Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa (p. 80), onde, por maioria de razões, o motivo das ondas também está presente.

Não admira a adopção da calçada portuguesa em cidades tropicais, pois esta arte de talhar e justapor as pequenas pedras de calcário sem recurso a argamassas de qualquer tipo torna permeáveis os solos em que assenta. Um século de mosaico português no centro histórico de Campinas deu matéria para uma tese na respectiva Universidade Estadual em 2011. O brasileiro Cristóvão Fernandes Duarte considera que esta é uma “técnica economicamente sustentável e capaz de responder com eficiência energética e responsabilidade ambiental aos desafios colocados à gestão urbana no mundo contemporâneo” (p. 108). Pelo seu lado, a partir da sua vasta e bem acolhida intervenção em Macau, o arquitecto paisagista Francisco Caldeira Cabral (1948-) também destaca que “com 1 m3 de pedra de calçada conseguem-se fazer 15 m2 de pavimento, e esse mesmo m2 de pedra, transformado em cimento, só chega para produzir c. 5 m2 de pavimento, com um enorme desperdício de energia eléctrica e com uma durabilidade de um máximo de 10 anos” (p. 124).

Ora, a lúcida bondade destes postulados choca de frente com a substituição massiva de calçada por lajes de liós, que a Câmara Municipal de Lisboa de Salgado & Medina — sem rebuxo —  levou a cabo em intervenções “modernizantes” enquanto promovia a candidatura desta técnica portuguesa junto da UNESCO e desenvolvia propaganda dita ambientalista a par e passo contraditória com tais práticas, claramente nocivas para a porosidade e qualidade dos seus solos urbanos… É como construir um vasto terminal para cruzeiros muito a montante da foz do Tejo, e simultaneamente falar de “cidade verde” e coisas do género, ou como fazer uma pomposa creditação de “lojas históricas” (aliás, sem paralelo com as das vizinhas Madrid e Barcelona) enquanto se facilita a gentifricação da Baixa que as aniquilará em três tempos… Não admira, portanto, que — ao contrário de Aveiro, Vila do Conde e da distante Macau — nenhuma encomenda de criação contemporânea da calçada portuguesa na cidade tenha sido feito, ou que a escola municipal de calceteiros (“onde se perenizam estes saberes”, aponta Fernando Medina, p. 7) pareça ter os dias contados.

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