Um viajante em Hong Kong, outro em Israel e mais uma na Bélgica foi o suficiente para lançar a preocupação de que uma nova variante (a Ómicron) se tivesse escapado de África. O médico de Saúde Pública, Vasco Ricoca Peixoto, no entanto, lembra que o Reino Unido identificou há já uns meses uma outra variante que pode tornar o inverno um pouco mais difícil em Portugal e na Europa — a sublinhagem AY.4.2, descendente da variante Delta.

Ómicron tem mais de 30 mutações e pode estar bem mais disseminada. O que se sabe sobre a nova variante?

É como ver sempre o mesmo filme na véspera de Natal. No ano passado, a variante Alpha entrou (ou foi detetada) em Portugal em dezembro de 2020 e em dois meses conseguiu destronar completamente a variante que tinha dominado o país ao longo de um ano, desde março de 2020. Essa era conhecida por ter uma mutação que facilitava a transmissão — a D614G. A Alpha, no entanto, conquistou-lhe o espaço porque era 40% mais transmissível. Depois, foi rapidamente (em pouco mais de um mês) destronada pela variante Delta, 60% mais transmissível.

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A AY.4.2 é apresentada como uma sublinhagem da Delta, como se isso servisse de atenuante depois de tanto tempo a convivermos com uma variante tão bem sucedida como a Delta. O facto é que AY.4.2 é como a Delta, mas com duas mutações adicionais e estima-se que seja um pouco mais transmissível. As duas mutações, no entanto, não têm levantado grandes preocupações aos cientistas.

O Centro Europeu de Prevenção e Controlo da Doença (ECDC) considera a AY.4.2 uma variante de interesse (e não de preocupação), para a qual considera que existe evidência de impacto na transmissibilidade, mas para a qual falta ainda evidência de que afete a imunidade ou a severidade da doença. O ECDC confirma também que a variante já está em transmissão comunitária na Europa.

O que se sabe sobre a AY.4.2, a nova variante que nasceu da Delta?

Vasco Ricoca Peixoto, investigador na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), foca-se menos na alteração que cada uma das mutações pode provocar e mais no efeito que a variante tem nas amostras que são analisadas no país. O Reino Unido, que analisa cerca de 20% das amostras positivas, mesmo quando tem 40 mil casos diários, acaba por se tornar o grande farol das variantes na Europa.

A quantidade de amostras positivas analisadas permite detetar variantes, mesmo que a sua frequência seja tão baixa como 0,1% de todos os genomas sequenciados. Foi assim que em setembro de 2020 se detetaram os primeiros casos da variante Alpha. De 26 de setembro para 28 de novembro, a frequência passou de 0,1 para 11,8% e, depois, para 65% no dia 26 de dezembro.

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No final de março, quando começaram a ser detetados os primeiros casos de Delta, a variante Alpha representava mais de 99% das amostras analisadas. Até ao final do mês de abril, a Delta passou a representar mais de 7% e a cada semana de maio tornava-se mais frequente: 20, 38, 60 e 77% já na última semana do mês. A 19 de junho, entre as amostras analisadas geneticamente, 96,8% eram Delta e 3,2% eram Alpha.

No início vão sempre crescer devagar face às outras que estão mais disseminadas [a AY.4.2 em relação à Delta]”, diz Vasco Ricoca Peixoto, investigador na ENSP.

Ainda antes de a Alpha e a Beta deixarem de ser detetadas nas amostras britânicas analisadas, já a AY.4.2 aparecia com as frequências iniciais de 0,1% no final do mês de junho — mas a Delta continuava com uma frequência de 98,7%. A AY.4.2 cresceu pouco no início: 3% em dois meses, até final de agosto. “Quando a incidência dos casos é baixa, demora a arrancar”, diz Vasco Ricoca Peixoto. Mas desde meados de setembro que a AY.4.2 só aumenta a frequência e a Delta só diminui— frequências de 16,4 e 83,6%, respetivamente, a 13 de novembro. “Se uma variante faz esta transição, é importante prestar-se atenção”, diz o médico.

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Para Vasco Ricoca Peixoto, é claro que, pelo caminho que a sublinhagem AY.4.2 leva, vai acabar por ultrapassar e dominar a Delta. “Poderá chegar a 40 ou 50% durante o inverno no Reino Unido”, diz ao Observador. E se isto está a acontecer no Reino Unido, que tem um bom sistema de vigilância genómica, estará certamente a acontecer noutros países, como em Portugal.

Num patamar muito diferente do Reino Unido, Portugal analisa cerca de 500 sequências genéticas por semana. Vasco Ricoca Peixoto considera um número de análises insuficiente para permitir uma boa monitorização e alerta que, quando a recolha de amostras para análise se concentra em um ou poucos surtos — como aconteceu no surto na Universidade de Coimbra —, as frequências deixam de ser representativas da população portuguesa. Ou seja, deveríamos ter amostras vindas aleatoriamente de todo o país para termos uma imagem mais fidedigna da frequência das variantes em Portugal e nas várias regiões.

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Apesar das limitações identificadas pelo médico de Saúde Pública, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge já analisou 46 amostras desta variante, “representando uma frequência relativa tendencialmente crescente nas últimas semanas, de 1,8% (18 a 24 de outubro) para 2,6% (1 a 7 de novembro)“, segundo o último relatório “Monitorização das Linhas Vermelhas para a Covid-19”.

A maioria dos casos foram detetados no Algarve, onde a transmissão já é comunitária. O instituto informou que já foram detetadas amostras de AY.4.2 em todas as regiões, com exceção dos Açores, com destaque para “a existência de cadeias de transmissão ativas, a maioria das quais com ligação a atividades associadas ao turismo”.

Variante AY.4.2 tem transmissão comunitária na região do Algarve e está a crescer no Reino Unido. Sublinhagem da Delta será mais contagiosa

Para Vasco Ricoca Peixoto é imperativo travar a entrada no país da variante AY.4.2, Ómicron ou outras. Sabendo que a vacina não é 100% eficaz a evitar a transmissão e a proteger da infeção, o médico concorda com a medida apresentada pelo Governo que exige, além do certificado de vacinação, um teste negativo para o SARS-CoV-2. Mas o médico de Saúde Pública defende que se devia ir mais longe e pedir também um teste ao quinto dia com obrigação de registar o resultado numa plataforma. Assim, defende, quem tenha chegado com uma infeção recente (e ainda não detetável) já estará em condições de acusar positivo no teste.

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