Em 1909, ainda não havia estúdios de cinema em Hollywood, nem sequer um cinema, porque estavam proibidos pela municipalidade, e já Allan Dwan lá estava a fazer filmes. E por um puro acaso. Engenheiro electrotécnico de formação, Dwan trabalhava em iluminação e como argumentista para algumas das primeiras produtoras cinematográficas americanas em Nova Iorque e Chicago, quando foi mandado à Califórnia pelo director da American Film Company, onde estava empregado na altura, para ver o que se passava com uma equipa que tinha sido enviada para ali para rodar uma fita de “cowboys”, e da qual não havia notícias há vários dias.

Lá chegado, Allan Dwan descobriu os actores e os técnicos no hotel, sem nada para fazer. O realizador andava na farra e nos copos em Los Angeles há duas semanas e tinha-se esquecido completamente da fita. Dwan mandou um telegrama à produtora a informar da situação e a sugerir que a equipa fosse desfeita e voltasse a casa, porque não havia realizador. “Realize você.”, foi a resposta seca de Chicago. Dwan juntou então os actores e os técnicos, perguntou-lhes o que tinha que fazer, eles deram-lhe algumas indicações básicas (“Pegue no megafone e grite ‘Vamos lá!’ ou ‘Acção!’), o aprendiz de realizador pôs mãos à obra e mal ou bem, safou-se. E tomou-lhe o gosto e nunca mais parou.

[Veja imagens de “Robin dos Bosques”:]

Nascido no Canadá e naturalizado americano Allan Dwan (1885-1981), a quem a Cinemateca dedica uma grande retrospectiva de quinta-feira, dia 2 de Dezembro, a dia 31 de Janeiro, realizou mais de 1400 filmes entre 1911 e 1961, entre curtas e longas-metragens, muitos dos quais se perderam. A sua carreira vai dos primórdios da Sétima Arte e do cinema americano ao ocaso dos grandes estúdios e da Hollywood clássica, e está marcada pelo pioneirismo a vários níveis. Dwan inventou vária da aparelhagem de iluminação de cinema, concebeu o equipamento que permitiu os planos de grua de D.W. Griffith em “Intolerância” e foi o primeiro a pôr uma câmara sobre rodas, bem como um dos primeiros realizadores a filmar a cores, com som e de noite usando iluminação artificial.

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[Veja um excerto de “Máscara de Ferro”:]

Era o realizador favorito de Douglas Fairbanks – que dirigiu em onze filmes, nomeadamente no clássico “Robin dos Bosques”, de 1922, a primeira fita a custar um milhão de dólares -, Gloria Swanson, Mary Pickford e Shirley Temple. Foi ele que “descobriu” Lon Chaney, Rita Hayworth, Carole Lombard, Ida Lupino, Natalie Wood, Victor Fleming e Robert Rossen. John Ford foi aderecista de Dwan e Erich von Stroheim seu assistente de realização. Trabalhou para a Essanay de Charlot, para a Triangle de Griffith, a Douglas Fairbanks Pictures, a United Artists, a Paramount a Fox, a MGM, a Republic (o maior dos pequenos estúdios independentes), a RKO e como realizador independente.

[Veja o “trailer” de “O Inferno de Iwo Jima”:]

Allan Dwan tocou em praticamente todos os géneros e dirigiu várias gerações de actores e actrizes de Hollywood, das maiores estrelas a nomes de segundo plano, em grandes produções mudas e sonoras e em muitas séries B (só lamentava, na sua longuíssima e prolífera carreira, ter “assinado contratos para realizar filmes que não interessavam, porque queria estar sempre a trabalhar”, como disse a Peter Bogdanovich, que lhe dedicou um livro, “The Last Pioneer”). Foi um dos mais pragmáticos, fluentes, eficazes, inventivos e polivalentes contadores de histórias do cinema americano, caracterizado pela energia, desenvoltura, sentido de humor, grande humanidade e total despretensão. “Nunca tentei deliberadamente ser um realizador dito ‘artístico’. Sempre fui uma pessoa prática.”, afirmou a Bogdanovich numa longa entrevista contida no livro deste “Who the Devil Made It”.

[Veja o trailer de “A Rainha do Montana”:]

Entre os filmes de Dwan com maior sucesso ou mais bem-amados por público e cinéfilos, vários dos quais poderemos ver na Cinemateca, encontram-se o citado “Robin dos Bosques”; o drama romântico “Escravizada” (1924), com Gloria Swanson; “Máscara de Ferro” (1929), uma fita de capa e espada de novo com Douglas Fairbanks; a superprodução “Suez”; a comédia “screwball” “Uma Mulher e Sete Milhões” (1945); “O Inferno de Iwo Jima” (1949), que deu a John Wayne a primeira nomeação ao Óscar; o filme de guerra aérea “The Wild Blue Yonder” (1951); “Flor Bravia” (1952), com Jane Russell no papel de uma pistoleira; o “western” paródico “Woman They Almost Lynched”, com Joan Leslie e Audrey Toter enfrentando-se à pancada e a tiro numa cidade onde mandam as mulheres; “A Rainha da Montanha”, outro “western”, onde Barbara Stanwyck, ao lado de Ronald Reagan, come as papas na cabeça aos homens todos; ou ainda o policial “Matar para Viver” (1957), com Ray Milland, Anthony Quinn e Debra Paget.

[Veja o “trailer” de “Matar para Viver”:]

Este ciclo Alan Dwan da Cinemateca é o mais completo já realizado até agora. Serão exibidos cerca de 60 filmes, que representam todas as fases da carreira do realizador, e abre com o proto-“western” de uma bobina “Mother of the Ranch” (1911), um dos seus primeiros filmes, seguido pela última realização de Dwan, feita meio século mais tarde, a ficção científica “O Mais Perigoso Homem Vivo”, de 1961, produzida por Benedict Bogeaus, com quem o cineasta trabalhou muito e em excelente harmonia nos seus últimos anos de actividade. Entre quinta-feira, 2 de Dezembro e 31 de Janeiro de 2022, todos os caminhos vão dar aos filmes de Allan Dwan na Cinemateca. E se são muitos…

(Veja aqui a programação de Dezembro do ciclo: https://www.cinemateca.pt/programacao.aspx?ciclo=1410)