Título: Mundo Belo, onde Estás
Autora: Sally Rooney
Tradução: Marta Mendonça
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 312

Sally Rooney tem sido apontada como o principal nome literário da geração millennial. O seu romance anterior, Pessoas Normais (2018), impressionou a crítica e foi adaptado para formato televisivo, numa série transmitida pela HBO. Aponta-se-lhe sempre a prosa sem rodriguinhos: tudo é funcional, quase cinematográfico, tudo procura o osso. Neste Mundo Belo, onde Estás vemos ainda essa capacidade nas acções descritas, mas o romance perde-se nas partes epistolares, em que a autora parece decidida a catequizar o leitor.

Aqui, a acção gira em torno de quatro jovens, mas especialmente de Alice, romancista cheia de sucesso, que se mudou de Dublin para uma terra pequena. Ali conhece Felix, que trabalha num armazém. A escritora pede-lhe que viaje consigo para Roma, onde vai promover mais um livro, e, uma vez regressados, parecem apaixonar-se.

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Em Dublin, fica Eileen, a melhor amiga de Alice, que, após o fim de uma relação, reata com Simon, que conhece desde criança. Fora as cenas de acção entre Alice e Felix, a narrativa do romance compõe-se quase exclusivamente por cartas trocadas entre as duas amigas.

O romance tinha muito para dar certo, mas falha estrondosamente em algumas partes. A relação de Alice e Felix parece ser ali metida a pontapé. Conheceram-se no Tinder e não parecem ter nada em comum, razão pela qual o leitor não entende sequer porque é que se aguentam. E menos entenderá ainda porque é que Alice se apaixona por ele. O seu sucesso intimida-o, ele parece permanentemente ressabiado, dominado pela sensação de inferioridade. Trata-a mal, tenta humilhá-la, e ela, culta, marxista, deixa-se levar. Quando lhe fala de amor e de paixão, a sensação de desfasamento do leitor é tal que quase se sente vergonha alheia. Felix não parece ter nada para dar, e não se entende, nesta relação, a construção de Alice. Se é certo que a paixão pode aparecer como um foguete, também é certo que o foguete precisa de combustível. No início, quando se encontram, o constrangimento dos dois soa a coisa real, e isso é bom de ler. Percebe-se que do Tinder à vida vai um abismo. Contudo, a opção que Rooney tomou, de materializar esta relação, é difícil de encaixar, já que a personalidade explícita de Alice não se coaduna com uma paixão assim.

O outro ponto negativo do romance, e que se sente tanto em Alice/Felix como em Eileen/Simon, é uma tendência excessiva da autora para explicar o que não tem de ser explicado. Antes do sexo, há sempre um preâmbulo de várias páginas, em que os intervenientes perguntam e confirmam, tirando-se a espontaneidade ao que se sucede e que fica transformado no resultado de uma negociação prévia. Pode mesmo dizer-se que nunca se falou tanto de sexo como nas camas de Sally Rooney. Depois de tanta conversa, num aquecimento que parece pelo menos ir para algum lado, a autora trata a relação sexual em duas ou três pinceladas displicentes, quase púdicas. Aí, as conversas anteriores – filosóficas, íntimas, descomplexadas – robotizam-se em banalidade. É tudo descritivo e não se faz nada sem autorização. Há vários orgasmos de dois homens, mas sempre com etiqueta: ninguém chega lá sem pedir permissão antes.

As conversas entre os pares também pecam pelo quão pouco plausíveis são, pelos picos de exposição emocional incompreensíveis. Gente que mal se conhece, de repente, só porque sim, entra num estado de destravamento emocional que se incompatibiliza com o cinismo expectável de quem se vê numa situação daquelas. De repente, não há jogo de cintura nem palavras medidas, o texto é a torneira aberta de onde jorram sentimentos, confissões, pecados. Ali, nada se esconde nem se soterra. E, se chega a ser constrangedor para o leitor, como não o é para as personagens? Inicialmente, Rooney cria uma distância – o que se entende mais no caso de Felix e de Alice, já que acabaram de se conhecer, embora se possa compreender também em Eileen e Simon, já que têm um passado em causa –, mas depois, do nada, as confissões são descaradas sem explicar porquê.

De resto, as cartas entre Alice e Eileen, que exploram outra dimensão da vida social de ambas, pecam por excesso de informação aleatória. As duas misturam vida pessoal com teoria política, e na segunda parte tudo soa a inventado. Num momento, falam de um rapaz na cama, e no parágrafo seguinte dissertam sobre teoria laboral. Fala-se do preço que Eileen paga pela renda em Dublin e a seguir há um voo para a forma como o conservadorismo passou a ser associado a um capitalismo de mercado opressor. No meio da conversa banal sobre a vida, vem o debate sobre a possibilidade de expropriação forçada no pós-capitalismo. Alice questiona-se se Felix será ou não coisa passageira, mas também a dúvida é passageira, já que, pouco depois, o que importa é saber se os seres humanos perderam o instinto para a beleza devido à queda do Muro de Berlim.

Rooney parece bem intencionada, o problema é mesmo revelar as intenções. O leitor recebe informação como uma criança a ser ensinada e o que irrita é que nada daquilo funcione como elemento interno da narrativa, que é como quem diz que não serve para nada. Ainda por cima, e porque são informações tão desfasadas da narrativa, e porque tanto podiam ser essas como outras, os fragmentos não colam e as discussões geopolíticas sabem a copy & paste de parágrafos na folha Word. O leitor não chega sequer a ter tempo para tirar conclusões, simplesmente recebe a informação.

De resto, a prosa de Sally Rooney tem grandes méritos. A autora consegue pôr o leitor em cena com as personagens. A maior parte dos diálogos é viva, com pendor oralizante, fruto da estratégia narrativa da autora, que passa por mostrar o que se passa. As dúvidas e as inquietações das personagens também mexem com os clichés de uma narrativa previsível, ainda que a maior parte das pontas não ate. Para mais, a prosa é seca, vai até onde tem de ir sem voos escusados e não se vislumbra qualquer tendência para a poeticidade inútil.