Título: Ponta Delgada: Memórias fotográficas 1860-1960
Autor: Pedro Pascoal de Melo
Design: Vítor Marques
Editor: Artes e Letras
Páginas: 319, hard-cover

Este belo livro é deveras exemplar e por dois motivos: primeiro, enquanto elogio da fotografia como documento histórico que permite “reconstruir” uma cidade no arco de um século inteiro, recuando afinal até aos primórdios da própria fotografia ela mesma; segundo, porque quem o imaginou, construiu e legendou é a pessoa certa no lugar certo, o mesmo é dizer Pedro Pascoal de Melo (1961-) no Instituto Cultural de Ponta Delgada (1943-), prestigiada agremiação privada a cujo património e zelo 20 mil imagens de quase 50 colecções fotográficas, familiares ou comerciais, foram confiadas. Estamos, portanto, diante dum arquivo fotográfico regional de grande valor, forte originalidade e absoluta autonomia institucional que agora — pela primeira vez — é trazido a pública evidência, como complemento da exposição que o precedeu e do acesso em-linha que o anunciou.

O sábio investigador de coisas micaelenses em particular (é, por exemplo, co-autor de Chá em São Miguel: cultura e vivências, um livro de 2012, e de A Biblioteca de José do Canto, também acabado de sair), e ele próprio um coleccionador de fotografias (v. pp. 35, 49, 55, 88, 92, 145, 146-47, 160, 281, 282, 291), foi amplamente responsável pela convergência desses preciosos materiais ao ICPL, procedeu à sua previdente e partilhável digitalização e — sobremaneira — à localização e comentário das vistas representadas, algo que não é tão evidente de fazer quanto isso, pois exige conhecimento estofado do pulsar duma cidade cuja condição insular-portuária (um ponto de união intercontinental a meio do Atlântico Norte) inexoravelmente se modernizou com infra-estruturas e rodovias, derrubando tudo o que lhe estorvasse o dito caminho do progresso.

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As primeiras imagens do livro exibem — precisamente — uma orla de Ponta Delgada que hoje já não vislumbramos: o belo edifício Mercado do Corpo Santo, deitado abaixo para a construção da ribeirinha Avenida Infante Dom Henrique a partir de 1948; e junto às Portas da Cidade, o Cais Velho e as Arcadas do Cais, tão presentes no mais célebre quadro de Domingos Rebêlo (fotografia, pp. 38-39), também já lá não estão. Antigas centralidades urbanas também desapareceram: a Avenida Antero de Quental, por exemplo, criada quase no fim do século sobre um aterro de 1873, com os seus cafés e cervejarias — uma delas, a Cosmopolita (pp. 30-31), diz tudo no seu nome —, foi um lugar para desfiles e concertos, onde também se festejaram a expedição Capelo e Ivens em 1885 (fotos, pp. 263-67), o cabo submarino (1893; p. 24), o fim da primeira guerra (1919; p. 27) ou a escala do hidroaviador Italo Balbo, em Agosto de 1933 (pp. 94-95). Entrecortada por duas extensas pontes de abastecimento à navegação marítima, em finais do século passado a Avenida exibia nas sucessivas fachadas os nomes das empresas inglesas de combustíveis (e uma fábrica micaelense de pregos…) viradas a um porto pontuado por veleiros de carga, navios a vapor e rebocadores, mas também cruzadores e couraçados militares — são realmente magníficas as fotos das pp. 69 e 74, albuminas de 1898 e c. 1900. Era ali que, nos anos 1930-40, curiosos se acotovelaram e carros de praça perfilados esperavam turistas dos paquetes que queriam ir ver Sete Cidades e Furnas.

Passeio público da cidade a partir de 1825, delimitado por edifícios nobres, o vasto Campo de São Francisco tem ainda hoje ao centro um coreto envolvido num pequeno lago circular — onde, de Verão, filarmónicas e bandas militares tocavam aos fins de tarde dos domingos e dias santificados —, bordejado por dupla fileira arbórea. Foi tanto arraial da Festa do Senhor Santo Cristo dos Milagres — a procissão saía da monumental igreja do convento de Nossa Senhora da Esperança (fotos, pp. 121, 119) — como palco principal de animados cortejos carnavalescos com carros alegóricos e batalha de flores. Perdeu em 1914 o seu belo chafariz setecentista (p. 117) nas operações de aterramento do fosso norte do adjacente Forte de São Brás, e na década de 1940 toda a aprazível sombra da sua moldura de árvores, quando se preferiu destacar a envolvente edificada e o novo piso decorativo em calçada portuguesa de fundo negro e linhas brancas (p. 135).

Boa parte das imagens de fim de século são do estúdio Photographia Artistica, cuja sede funcionava muito perto, na antiga Rua da Esperança, a meio caminho da Praça do Município, onde se destacava o Café Suíço, inaugurado em 1896 e durante algum tempo um café-concerto. Suponho que foi especialmente inspirado nessa fotografia — aliás, eleita para a capa e da sua colecção privada — que o autor se referiu a imagens fotográficas “imbuídas de uma aura mítica que nos emociona, levando-nos eventualmente a desejar ter vivenciado cada um daqueles momentos e projectando-nos recordações que são pertença de um imaginário colectivo” (p. 10). Tudo nessa imagem (pp. 144-45) — e na seguinte, que lhe amplia o campo — apela a esse “tempo perdido”, proustiano e de todos: as portas altas do estabelecimento, a verga dos cadeirões da esplanada, a elegância dos ociosos, a beleza do ferro-forjado da varanda, o requinte formal dos enormes dísticos comerciais (e que fealdade os de hoje, não?!…), a trupe de gaiatos para pequenos fretes e recados, os motivos decorativos na fachada da loja incompleta à direita, que logo na dupla página seguinte — por fotografia também da colecção Pedro Pascoal — sabemos ser a loja de “mercearias e líquidos” da casa Domingos Dias Machado.

Marcos históricos perpassam inevitavelmente este portefólio urbano, tanto a visita régia de D. Carlos I e D. Amélia (fotos, pp. 268-83) como as comemorações do primeiro aniversário da república dez anos depois, com o seu “cortejo cívico” (?!) forçosa e esforçadamente celebrativo, no qual entraram “alunos da Escola Minerva empunhando bandeiras republicanas” e membros da Associação Operária União e Trabalho a sua (pp. 152-53), e muito em particular as festividades pelos quatrocentos anos da própria cidade de Ponta Delgada, em 1946 (fotos, pp. 288-95). Salas de espectáculos constam deste multifacetado elenco, sendo de destacar as fotografias do primitivo Teatro Micaelense, construído de 1861 a 1865 e derrubado pelo fogo em 1930, depois de ter sido também sala de ópera e cinema, e as dos admiráveis jardins de Ponta Delgada também, o de José do Canto e o de António Borges, embora muito menos representados do que se esperava.

É exactamente aí que mais se revelam os — naturalmente inevitáveis — limites deste corpo de imagens adstritas, convém lembrar, a um único arquivo, se atendermos a este caso e a eventos históricos relevantes omissos nestas Memórias Fotográficas 1860-1960, como sejam a impactante Visita dos Intelectuais do Continente no verão de 1924 (de que são bem conhecidas algumas excelentes fotografias do extraordinário coronel Francisco Afonso Chaves, cujo arquivo pertence ao Museu Carlos Machado, daquela cidade) ou a inauguração, em 1942, do Monumento a Antero de Quental pelo escultor Ernesto Canto da Maya, no jardim que leva o nome do poeta. Investigador especialmente encartado e atento, dificilmente escapariam a Pedro Pascoal de Melo quaisquer outras imagens conhecidas que completassem condignamente o espectro histórico-temporal em que decidiu focar-se, cabendo doravante a cada um dos leitores o bom exercício mnemónico de reconstituir a sua própria galeria de fotografias, ou, inversamente, quem as tenha esquecidas num recanto de casa vir a terreiro mostrá-las.

Livros deste tipo nunca estão encerrados, pulsam continuamente, dialogam com outros, pretéritos ou futuros, enquanto ajudam à valorização e integração da fotografia histórica, num processo cada vez mais dinâmico. Nada obsta a que, na sociedade cosmopolita açoriana dos inícios do século XX, fotógrafos amadores estejam ainda por descobrir, ou que viajantes estrangeiros que por ali passaram tenham, também eles, “disparado” as suas câmaras, como outros descreveram em livros ou jornais quanto viram e sentiram. As notas sobre fotógrafos incluídas nas páginas finais referem o sueco Schenk e o alemão Reeckell, que “passaram por Ponta Delgada na década de 1860” (p. 317), mas alguns outros certamente terá havido, pelo menos até 1914-18, dada a conhecida mobilidade de estúdios fotográficos europeus rumo a ultramares, ocidentais ou orientais. A Fotografia nos Açores. Dos primórdios ao terceiro quartel do século XX (Carlos Enes, 2011), não está daqui por diante só. Se for bem sucedida, a candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura 2027 terá, certamente, neste campo uma excelente oportunidade de pesquisa intensa e exposição de grande sucesso.

Três pequenas críticas apenas, que são sobretudo recomendações para uma segunda edição: tradução dos textos e legendas em língua inglesa, no final do livro; índices toponímico e onomástico; e um mapa de Ponta Delgada que esclareça num relance as principais e decisivas mudanças urbanísticas ocorridas no período em questão.