Mulheres que caminham quilómetros em busca de água, crianças que chegam demasiado tarde para serem salvas e pessoas que comem cinzas para enganar a fome são relatos da “horrível” crise alimentar em Madagáscar, segundo um trabalhador humanitário.

“Uma criança que sofria de malnutrição chegou à nossa clínica… Mas era demasiado tarde para salvá-la. Eu acabei de testemunhar isto”, disse Prince Kalolo, que tem 29 anos e está em Madagáscar desde 2019 a trabalhar para a organização não-governamental brasileira Fraternidade Sem Fronteiras (FSF).

Em 18 de novembro, a ONU pediu mais fundos para ajudar as 1,3 milhões de pessoas que enfrentam uma situação de insegurança alimentar severa no sul da ilha de Madagáscar. Segundo disse então o porta-voz do Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA), Jens Laerke, “tecnicamente a fome ainda não foi declarada” em Madagáscar porque nem todos os critérios das Nações Unidas foram cumpridos, mas “já há 28.000 pessoas em condições semelhantes às da fome”.

Um mês depois, a situação está longe de melhorar, disse à Lusa Prince Kalolo, que relata um cenário “horrível”. “A fome continua e ainda existe nesta parte sul de Madagáscar, apesar da ajuda que algumas organizações estão a prestar e de tudo o que estamos a fazer. Ainda há fome e ainda ameaça as vidas das pessoas”, contou o congolês, numa entrevista por telefone desde Ambovombe, no sul de Madagáscar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“As pessoas estão a sofrer. Às vezes dormem com fome, passem dias em que não veem comida e vivem de catos ou comem tamarindeiros e às vezes até cinzas. Eles comem cinzas”, enfatizou Kalolo. A FSF, disse o trabalhador humanitário, fornece atualmente 12 a 15 mil refeições por dia, mas há muitas mais pessoas a precisar de ajuda.

“Às vezes encontramos famílias de 10 ou 15 pessoas, todos a passar fome. Não têm nada, encontramo-los a chorar por ajuda e trazemo-los. É muito doloroso, mas dá-nos força para lutarmos, para os procurarmos e para tentarmos ajudar”, afirmou, explicando que há aldeias completamente isoladas, que não têm sequer uma estrada por onde se possa lá chegar de carro. Segundo Kalolo, há pessoas que caminham quilómetros para procurar água, às vezes até 30 quilómetros. “E quando encontram água não têm comida em casa (…) sobrevivem sem esperança”.

Segundo a ONU, a crise alimentar em Madagáscar resulta de uma seca prolongada, a mais grave nos últimos 40 anos, que, combinada com tempestades de areia e pragas, tornou impossível à população da região do Grande Sul da ilha de Madagáscar cultivar nos últimos três anos.

A crise já foi considerada a primeira fome provocada pelas alterações climáticas, mas no início deste mês os cientistas da World Weather Attribution (WWA), uma colaboração internacional que avalia o papel das alterações climáticas em eventos meteorológicos extremos, concluíram que o aquecimento global teve um papel mínimo na seca do sul de Madagáscar.

Questionado sobre esta notícia, Kalolo disse não poder discutir com os cientistas, apenas relatar o que vê. “O que eu sei é que não há chuva, ainda não choveu este ano, há tempestades de areia todos os dias — está a soprar agora, enquanto falo consigo”, contou Kalolo, acrescentando que quando falava eram 17:00 e estavam 36ºC. “Não há sinais de chuva e mesmo que chova já é quase tarde demais para as plantações”, lamentou.

O ativista, que nasceu na República Democrática do Congo e fugiu para o Maláui, onde foi acolhido como refugiado, apela ao mundo que olhe para o sul de Madagáscar e se junte para ajudar a população e para responder à falta de água. “Quando respondermos à questão da água, vamos encontrar muitas das respostas às dificuldades que as pessoas no sul de Madagáscar enfrentam”, disse, sugerindo a utilização de bombas de água, de ligações aos rios existentes para levar a água às comunidades.

Enquanto espera pela chuva, Kalolo mantém a esperança num futuro melhor: “Esperamos e acreditamos que vai melhorar. Rezamos por isso”.