Quando era pequeno, Fernando Guiomar gostava de “desmontar as coisas”, vê-las por dentro. “Lembro-me de ter os carrinhos telecomandados e a primeira coisa que eu queria fazer era abri-los e desmontá-los e brincar com aqueles componentes”, diz o investigador do Instituto de Telecomunicações (IT), na Universidade de Aveiro, referindo-se ao hardware de objetos electrónicos.

Nem sempre conseguia voltar a montar os objetos de forma a que voltassem a funcionar, admite, mas cativou-o o “método de tentativa e erro da Engenharia”. Depois, a atração por disciplinas como Matemática e Física ajudou na escolha do caminho profissional. Mas houve um momento em que a dúvida se poderia ter instalado. “Se calhar, vou-me contrariar aqui um pouco, mas também tive sempre bastante interesse pelas áreas de Humanidades e pela parte de escrita criativa.”

Resolveu assim juntar os dois mundos: “Acabei por enveredar por uma carreira de investigação científica, que também requer um pouco dessa capacidade de escrita, de ação e de criar a narrativa para determinada resolução de um problema”.

O investigador, co-autor de três patentes sobre equalização linear e não linear de deficiências de fibras óticas, quer desenvolver “abordagens inovadoras de comunicação ótica, fornecendo soluções fiáveis e de alta capacidade para implantações com fios ou sem fios”

Por isso, para criar a narrativa científica do pós-doutoramento, financiado em cerca de 300 mil euros pela Fundação “la Caixa” ao abrigo de uma bolsa Junior Leader, Fernando Guiomar escolheu estudar um problema que nos impacta a todos: contribuir para evitar a rutura da capacidade da rede perante a atual utilização massiva das telecomunicações.

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“Opt5G+: infraestrutura de transmissão ótica de alta capacidade para suportar comunicações 5G e mais além” é o nome da investigação do engenheiro do IT-Aveiro.

O objetivo é colmatar o fosso cada vez maior entre as comunicações rádio e óticas, que foi recentemente fomentado pelo desenvolvimento do 5G e deve ser abordado atempadamente, a fim de evitar uma rutura de capacidade na rede de transporte ótico”, resume o investigador, reportando-se à descrição formal do projeto.

“Houve um passo muito grande na demanda de melhores telecomunicações por causa da pandemia”, contextualiza, exemplificando: “a utilização de serviços de videoconferência, teletrabalho, cuidados de saúde à distância e educação, que fizeram aumentar exponencialmente os requisitos da rede”. Mas o desafio vai mais além. “É conseguir responder a um mercado que está constantemente a duplicar praticamente de ano para ano os seus requisitos de largura de banda.” Nesse sentido, sublinha o investigador de 35 anos, “não podemos parar no desenvolvimento de novas tecnologias, porque isso iria implicar uma estagnação do mercado num curto espaço de tempo”.

O engenheiro, que é também co-autor de três patentes sobre as áreas de equalização linear e não linear de deficiências de fibras óticas, propõe-se então a desenvolver “abordagens inovadoras de comunicação ótica, fornecendo soluções fiáveis e de alta capacidade tanto para implantações com fios (baseadas em fibra ótica) como sem fios (ótica de espaço livre)”.

Fernando Guiomar formou-se em Engenharia Electrónica e de Telecomunicações (2009) e doutorou-se em Engenharia Electrotécnica (2015) pela Universidade de Aveiro. Entre 2015 e 2017, trabalhou com o grupo OptCom do Politecnico di Torino, numa parceria com a CISCO Optical GmbH de Nuremberga, e também como investigador de pós-doutoramento, onde desenvolveu subsistemas de modulação flexível e processamento digital de sinais para redes óticas elásticas.

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É co-autor de mais de cem publicações científicas em revistas e conferências internacionais de renome e, atualmente, é responsável técnico pela infraestrutura de investigação do Optical Radio Convergence Infrastructure for Communications and Power Delivering (ORCIP), em Aveiro, liderando o projeto Opt5G+.

O cientista faz questão de enfatizar que foi “o ORCIP, uma infraestrutura de investigação que está no roteiro de infraestruturas de investigação nacionais, que permitiu, precisamente, alavancar a aquisição de equipamento laboratorial”, para começar a desenvolver a sua investigação científica a partir de 2017.

A principal área de atuação deste novo projeto está nas comunicações por fibra ótica em espaço livre, “utilizando a luz como forma de comunicação a muito alto débito, ou seja, com elevada taxa de transmissão: acima de cem gigabits por segundo, ou até na faixa dos terabits por segundo”. Estas taxas de transmissão são ainda bastante elevadas para o mercado atual, mas o investigador entende que este não é um horizonte tão longínquo assim, sendo urgente “criar soluções de alta capacidade que possam antecipar as necessidades do mercado das telecomunicações num futuro próximo”.

É nesse sentido que o cientista vai incidir nas comunicações sem fios, utilizando a luz. “São comunicações a que chamamos de free space optics, que têm que ver com a comunicação ponto a ponto, utilizando luz não visível, infravermelhos.” Dessa forma, conseguem-se estabelecer ligações de elevada capacidade, permitindo “um aumento de milhares de vezes na largura de banda que é fornecida pelos sistemas atuais”.

Hoje, ao nível das comunicações sem fios, há duas tecnologias que o engenheiro natural de Estarreja considera serem complementares: a radiofrequência, que é a mais utilizada, e a ótica (ainda a carecer de maior desenvolvimento). As duas, defende, terão de trabalhar em colaboração, apostando num formato híbrido.

A equipa de Fernando Guiomar identificou o interesse da NASA e da Agência Espacial Europeia neste tipo de tecnologia. “É encorajador para nós. Percebemos que aquilo que fazemos tem interesse comercial e estratégico no contexto europeu e mundial”

O 5G é uma tecnologia ainda muito recente no mercado e que está ainda a começar a ser implementada, embora esteja já “praticamente padronizada e bem definida pelos intervenientes industriais e também académicos”, enquadra. No 5G, tal como nas gerações anteriores, as comunicações sem fios são exclusivamente feitas por radiofrequência, “com a vantagem de ter um acesso mais simplificado”, na medida em que “o utilizador consegue usar hardware semelhante no seu smartphone e no seu portátil, baseado num mesmo tipo de antena”.

Mas a nova geração de telecomunicações, antevê o também professor universitário, pede novas soluções. “O que está já a ser discutido para a próxima geração, que será o 6G, provavelmente a ser implementada durante a década de 2030, passa pelo uso de uma solução híbrida de acesso sem fios [wireless], baseada numa simbiose entre comunicações óticas e de radiofrequência, permitindo assim aumentar a largura de banda de cada utilizador final.”

É aqui que incide o projeto Opt5G+, desenhado para melhorar o acesso ao utilizador final. “Neste caso, numa próxima geração 6G, já existe discussão preliminar da utilização destas tecnologias e, nesta fase, já podemos dizer que um dos focos de aplicação será utilizar novas tecnologias de comunicação ótica.”

Para testar a possibilidade de aumentar a capacidade de redes wireless, utilizando comunicação ótica, Fernando Guiomar e a equipa fizeram já um “setup experimental”, no IT-Aveiro, com instalação exterior, ao ar livre, e monitorização dentro do laboratório. Trata-se de um protótipo que permite “testar todas as funcionalidades do sistema e avaliar se a sua implementação prática será ou não viável, quais as limitações e quais as vantagens”.

No ecrã do computador do cientista é possível ver duas imagens de duas estruturas distantes entre si, num campo a céu aberto que, nesta fase, representam esse protótipo da investigação. “No fundo, temos um tipo de lente, como se fosse uma antena ótica, que irá fazer interface entre o sinal de luz que viaja na fibra e o sinal que depois viaja no espaço livre.”

A principal área de atuação do projeto está nas comunicações por fibra ótica em espaço livre, “utilizando a luz como forma de comunicação a muito alto débito, ou seja, com elevada taxa de transmissão: acima de cem gigabits por segundo ou até na faixa dos terabits por segundo”.

Neste processo de emissão e de receção de sinais óticos, o engenheiro e a equipa estão ainda a tentar compreender o impacto da turbulência atmosférica e da própria meteorologia na qualidade do sinal enviado. A boa notícia é que, nesta fase preliminar da investigação, os testes iniciais com a tecnologia desenvolvida já provaram ser possível  “estabelecer comunicação fiável a taxas de transmissão superiores a um terabit por segundo”.

A principal vantagem neste tipo de tecnologia, garante o investigador, é que “teremos taxas de transmissão muitíssimo mais elevadas e abrimos a porta para dar uma outra capacidade à rede com resiliência para várias décadas de expansão”. Ainda assim, salvaguarda, a tecnologia de comunicações óticas requer bastante trabalho investigativo, “para conseguirmos identificar bem essas fontes de distorção e compensá-las”.

Assim que esta tecnologia for de facto “uma solução comercial estável e robusta”, aumentando a largura de banda, Fernando Guiomar acredita que “irá permitir aos utilizadores ter capacidade de fazer download e upload, ou seja, de utilização da internet com muito maior taxa de transmissão, com rapidez de acesso a conteúdos online, com qualidade de videochamada e segurança de acesso”, entre outros.

Além disso, um dos próximos passos é encontrar outras áreas de aplicação que não só as terrestres. “Com base naquilo que fomos desenvolvendo – e já temos um estado de implementação bastante avançado para o projeto –, começamos a pensar como é que podemos explorar esta tecnologia noutros âmbitos. E, de facto, nas comunicações espaciais inter-satélite e terra satélite temos um nicho de aplicação com elevadíssimo potencial de expansão futura.”

Recentemente, por exemplo, identificaram o interesse da NASA e da Agência Espacial Europeia neste tipo de tecnologia. “Isso é sempre algo encorajador para nós, para percebermos que aquilo que estamos a fazer tem interesse comercial e estratégico no contexto europeu e mundial”, confidencia, enfatizando ainda o potencial de alcance desta tecnologia “para outros grandes players internacionais”.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de Fernando Guiomar no IT-Aveiro foi um dos 45 selecionados (nove de Portugal) – entre 575 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. O investigador recebeu trezentos mil euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As candidaturas para a edição de 2022 deverão abrir em breve.