“Os portugueses sempre se guiaram pelas estrelas para descobrirem o desconhecido.” Dita por João Oliveira, a frase não é apenas uma constatação histórica sobre navegação astronómica. É uma metáfora poética para o trabalho do investigador – que está a estudar os astrócitos (células cerebrais em forma de estrela) na esperança de que estes o possam guiar até novas descobertas sobre a depressão.

João Oliveira estuda as células do cérebro sobre as quais se sabe menos: as células da glia. O cérebro adulto, além dos seus cem mil milhões de neurónios, tem a mesma quantidade, se não mais, de células da glia, que significa “cola”. Foram assim batizadas porque se julgava ser esse o seu propósito: funcionarem como uma espécie de cola entre os neurónios. Agora, apesar de ainda não se saber muito sobre elas, sabe-se o suficiente para perceber que são muito mais do que isso.

João Oliveira estuda as células do cérebro sobre as quais se sabe menos: as células da glia, assim chamadas porque se julgava que funcionam como uma espécie de cola entre os neurónios. Hoje sabe-se que são muito mais do que isso

Para desvendar novos mecanismos sobre a depressão, o cientista está focado no subtipo mais abundante destas células, os astrócitos – assim chamados pelo seu formato de estrela. “Estas células – que são muitíssimo bonitas – estão em permanente diálogo com os neurónios. Como também têm receptores para muitos neurotransmissores, como a serotonina, conseguem ‘ouvir’ aquilo que os neurónios dizem uns aos outros e conseguem responder-lhes, libertando também transmissores.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta interação pode ter um papel na depressão, uma doença que, segundo a Organização Mundial de Saúde, afeta mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. Em Portugal, de acordo com a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, atinge cerca de 20% das pessoas ao longo da vida. Mas apesar da enormidade dos números, a doença ainda é, em grande parte, território desconhecido.

Sabemos que a doença afecta o funcionamento do cérebro em três dimensões: ao nível da comunicação entre as células, dos circuitos cerebrais e das alterações comportamentais”, explica o investigador de 41 anos.

Os medicamentos atualmente disponíveis atuam no primeiro destes níveis, possibilitando a modulação da sinalização celular. E são eficazes para muitos pacientes, mas não para todos: 15 a 20% das depressões são, por razões que ainda se ignoram, refratárias à medicação. O cientista espera ajudar a descobrir porquê.

Desde jovem que João Oliveira se sentiu inclinado para as ciências, disso não tinha dúvidas. Mas para a pergunta “O que que queres ser quando fores grande?” não tinha resposta concreta. “Não queria ser farmacêutico, nem médico, nem biólogo, nem químico. Mas foram todos esses cursos que coloquei nas opções de candidatura ao ensino superior. E fiquei à espera para ver o que me calhava. Calhou Ciências Farmacêuticas, na Universidade do Porto, a segunda opção.

Quando recorda os tempos de curso, aparece-lhe no rosto um sorriso travesso e coça a cabeça. João Oliveira não era o aluno marrão que se senta na primeira fila e a quem todos pedem os apontamentos. “Nunca quis ser aquele que tira as melhores notas.” Era, isso sim, um bom-vivant: estava envolvido em milhentas atividades extracurriculares, nas praxes, na Associação de Estudantes, na Associação Portuguesa de Estudantes de Farmácia. “Tudo atividades que tiram muito tempo, principalmente de noite”, diz a rir. “Vivi muito bem, conheci muita gente, fiz muitas coisas e dormi muito pouco. Na época de exames, atirava-me aos calhamaços de 700 páginas e fazia a cadeira.”

O investigador acredita que o estudo dos astrócitos (células cerebrais em forma de estrela) pode conduzir a novas descobertas sobre a depressão

Terminado o curso, decidiu-se a seguir investigação, que já tinha experimentado durante a licenciatura. Acabou por fazer o doutoramento na Faculdade de Medicina da Universidade de Leipzig, na Alemanha. Sob a orientação de Peter Illes, começou a aprender técnicas de eletrofisiologia que lhe permitissem estudar os neurónios. Mas havia uma inquietação que o perseguia: “E estas outras células que estão aqui, tão custosas de identificar?” Eram as células da glia, que começou a estudar no tempo livre. “Eram muito difíceis de gravar. Demorei um ano para conseguir.” As técnicas que aprendeu trouxe-as depois para o Minho, onde, com uma bolsa Marie Curie, iniciou um laboratório dedicado ao estudo das mesmas no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde. Orgulha-se disso: “do regresso a Portugal e de ter colocado Braga no mapa-mundo dos astrócitos.”

Co-fundador da Rede Glial Portuguesa – que reúne os investigadores portugueses, ou a trabalhar em Portugal, interessados nestas células –, o cientista não perde uma oportunidade de despertar o interesse de alguém para o seu estudo. A paixão por estas células, ainda misteriosas, faz parte da sua identidade. A prová-lo está o caderno de notas pousado sobre a secretária, que a equipa do laboratório lhe ofereceu no Natal passado. Na capa, personalizada, lê-se “Gang dos Astrócitos”.

Mais de dez anos volvidos sobre o início do estudo dos astrócitos, o investigador acredita que eles escondem respostas sobre a depressão. Testes anteriores com ratinhos que têm vidas como as nossas – stressantes – parecem confirmá-lo. Os investigadores aplicam um protocolo que, de certa forma, mimetiza as ansiedades e contrariedades a que os humanos estão sujeitos e que, com frequência, gera um padrão depressivo nos animais. Acontece que os ratinhos que têm algumas funções dos astrócitos previamente alteradas, com algumas proteínas “silenciadas”, são muito mais resilientes à instalação da depressão. “Isso diz-nos que há uma função dos astrócitos que é importante para a instalação de um padrão depressivo”, esclarece o investigador.

3 fotos

Foi partindo desse princípio que decidiram estudar o cérebro dos animais com e sem as funções alteradas aos vários níveis: a nível molecular, dos circuitos e do comportamento. E vão estudar cada animal individualmente porque eles, como os humanos, reagem de forma diferente a essas alterações ansiogénicas no ambiente. “Com técnicas de gravação é registado ao milissegundo o que acontece no cérebro de todos os animais. E, depois, vamos não só estudar os vários circuitos, como fazer uma análise célula a célula, para perceber, por exemplo, que proteínas estão afetadas.”

Uma análise tão extensa vai gerar milhões de dados, que serão abordados de duas formas diferentes: por um lado, através de análises informáticas que usam técnicas de inteligência artificial para detectar padrões; por outro lado, há o “faro” do cientista. “Muitas vezes é o cérebro do cientista, e não o computador, que cria o momento ‘Eureka’.” É por isso que a partilha e o trabalho em comunidade são tão importantes. “Essa ideia, por vezes, parte de alguma coisa que nos contou um colega num congresso ou de um estudo que se leu.”

Tenho a certeza que vamos encontrar alguma coisa diferenciadora, que ajude a perceber melhor a doença e resulte em potenciais terapêuticas inovadoras.”

Apesar de estar no início do trabalho, João Oliveira está convicto: além das suas próprias conclusões, que espera que tragam novidades, há todo o potencial dos dados que vai gerar. “Quando concluirmos o projeto, vamos disponibilizar as bases de dados gigantescas que este trabalho vai gerar a investigadores de todo o mundo.” Cada um dos projetos que surgir a partir daí é mais uma porta aberta para novas descobertas.

João Oliveira sabe que o trabalho de um cientista nunca fica verdadeiramente concluído, que novas respostas levam a novas perguntas, numa cadeia de trabalho que não terá fim. Apesar disso – ou por causa disso – chega todos os dias motivado ao laboratório. Talvez porque desde cedo compreendeu essa inesgotabilidade do trabalho.

“Cresci com pés enterrados junto às videiras.” Em Monção – de onde sai a uva para o vinho Alvarinho – ele e os três irmãos pegavam nas enxadas, quando voltavam da escola, para mondar as vinhas. “E o trabalho nunca estava feito.” Quando chegavam ao fim da vinha, já havia novas ervas daninhas a nascer do lado em que tinham começado.

“Quando concluirmos o projeto, vamos disponibilizar as bases de dados gigantescas que este trabalho vai gerar a investigadores de todo o mundo”, diz o investigador. Cada projeto que surgir a partir daí é mais uma porta aberta para novas descobertas

“Acho que vem daí a minha postura perante o trabalho. Tenho um nível de resiliência que chega a ser assustador.” Mas também é proveitoso. No final de Novembro de 2020, a Covid-19 bateu-lhe à porta. Ele e a mulher, médica do Hospital de Braga, testaram positivo e não demorou até começarem os sintomas. Com febre e dores, o corpo e a cabeça pediam-lhe descanso. Havia três crianças em casa – todas assintomáticas – a que era preciso dar atenção. Mas o prazo de entrega para a candidatura ao financiamento da Fundação “la Caixa”, uma quinta-feira, 3 de Dezembro, aproximava-se.

Pediu à mulher que “segurasse as pontas” uns dias com as crianças, foi engolindo uns comprimidos de paracetamol, montou um escritório improvisado na clausura do quarto e não desistiu. O resultado está à vista: o projeto Neuron-astrocyte Signaling in Depression: Learning from Astrocytes How to Effectively Treat Depression recebeu 500 mil euros para ajudar investigar o papel do astrócitos na depressão durante os próximos três anos.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Neuron-astrocyte Signaling in Depression: Learning from Astrocytes How to Effectively Treat Depression, liderado por João Filipe Oliveira, do ICVS, foi um dos 30 selecionados (12 em Portugal) – entre 644 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do Concurso Health Research. O investigador recebeu 500 mil euros mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 25 de novembro. Os prazos para a edição de 2023 deverão ser conhecidos no verão.