O Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla inglesa), partido no poder na África do Sul desde 1994, recebeu “donativos” milionários antes e depois da atribuição de contratos públicos na municipalidade de Joanesburgo, capital económica e maior autarquia do país.

“Não só houve comunicação com os licitantes, a evidência de fluxos de dinheiro relativos à autarquia de Joanesburgo mostra que milhões de rands em doações que foram feitas, antes e depois de certos contratos serem celebrados”, refere a primeira parte do relatório sobre a corrupção durante a presidência de Jacob Zuma, entre 2009 e 2018, divulgado pela comissão judicial Zondo.

“Os e-mails mostram que um mês antes da atribuição de um determinado contrato, o sr. Makhubo [na altura presidente da Câmara de Joanesburgo] solicitou à [empresa tecnológica] EOH um donativo para o ANC. Uma semana após a assinatura do contrato, o sr. Makhubo pediu outra doação. Digno de nota foram os 50 milhões de rands [2,7 milhões de euros] doados ao ANC para as eleições autárquicas de 2016“, lê-se no relatório.

“Os registos mostram uma série de pedidos de doações que coincidiram com a adjudicação de contratos”, refere a comissão de investigação sul-africana.

O juiz Raymond Zondo, que ouviu desde agosto de 2018 mais de 300 testemunhos sobre corrupção pública generalizada no país, salientou que estes casos “ilustram o envolvimento de altos funcionários do governo (incluindo o ex-presidente e membros do executivo) em relacionamentos questionáveis, para dizer o mínimo”.

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“A má conduta permeou as administrações das empresas públicas [SOES, na sigla em inglês] e também implicou altos funcionários administrativos”, referiu Zondo, salientando que “na maioria, senão em todos, desses casos, o padrão de abuso estendeu-se por vários estágios do ciclo de aquisições, evidenciando um relacionamento de corrupção embutido” no sistema público.

Nesta primeira parte do relatório, com mais de 800 páginas, o juiz sul-africano considerou ainda que as ações dos dirigentes do ANC governante “ilustram o uso da influência política para propósitos malignos, a nomeação de funcionários flexíveis para supervisionar a concessão indevida de propostas ou contratos, bullying ou substituição de funcionários que se opuseram a práticas irregulares, o desvio de dinheiro, como produto da corrupção, em benefício do ANC, o colapso da governação das SOES, falta de transparência, e o crescimento de uma cultura de impunidade” no país.

“É extremamente preocupante que as provas apresentadas na comissão estabeleçam uma relação entre a concessão corrupta de contratos públicos e o financiamento do partido político. Esse vínculo pode representar uma ameaça existencial à nossa democracia”, observou o juiz sul-africano.

Vinte anos de frustração, que incluem uma década de captura do Estado, expuseram impiedosamente as falhas e fraquezas do sistema de compras públicas, falhas e fraquezas que foram exploradas por criminosos para infligir danos duradouros à economia sul-africana. A promessa de prestação de serviços tão fundamental para a melhoria da nossa sociedade não se concretizou”, salientou.

A comissão judicial Zondo foi criada em janeiro de 2018 na sequência de um relatório sobre corrupção intitulado “Captura do Estado”, da autoria da então procuradora-geral da República (PGR) Tuli Mandonsela, divulgado em outubro de 2016.

O relatório teve por base uma investigação que Mandonsela conduziu sobre várias alegações de conduta imprópria por parte do então Presidente sul-africano Jacob Zuma, e da família Gupta, segundo a comissão “Zondo”.

Na sequência do relatório da PGR, o Presidente Zuma teve de nomear uma comissão judicial de inquérito, presidida por um juiz selecionado pelo presidente da Justiça do país.

Desde agosto de 2018, a comissão ouviu mais de 300 testemunhos, concluindo o processo em 12 de agosto de 2021, quando o Presidente Cyril Ramaphosa testemunhou pela segunda vez.

O documento indica que 1.438 pessoas e entidades foram implicadas através da apresentação de prova perante a comissão.

O registo oficial das audiências públicas contém 75.099 páginas de transcrições de testemunhos orais e mais de 1,7 milhões de provas documentais, segundo o relatório da comissão judicial de investigação sul-africana.

Esta primeira parte do relatório, em quatro volumes, contém os capítulos relativos à estatal aérea sul-africana SAA e associadas, aos negócios da controversa família indiana Gupta, próxima de Zuma, à Autoridade Tributária da África do Sul (SARS), e ao Sistema Nacional de Compras Públicas do Estado sul-africano, disse Zondo, que entregou pessoalmente na terça-feira a versão impressa ao Presidente da República Cyril Ramaphosa, em Pretória.

As próximas duas partes do relatório serão publicadas no final de janeiro e no final de fevereiro.