Uma variante do coronavírus mais infecciosa, mas menos perigosa para a saúde, não basta para baixar a guarda, defendem três especialistas — um engenheiro, um intensivista e um médio de saúde pública — entrevistados pelo Observador. A melhor estratégia para atravessar a pandemia de Covid-19 é continuar na tentativa de não fazer parte dos números de novos casos diários. Porquê? O serviço de saúde já está sob pressão, os testes não chegam. E, com mais infetados, o pior ainda pode estar para vir.

O Serviço Nacional de Saúde está em rutura, só não nos hospitais

Embora a pressão que a variante Ómicron está a exercer nos hospitais seja incomparável à que a Delta aplicou há um ano, o Serviço Nacional de Saúde continua comprometido, avisa o engenheiro Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa: não há rastreadores (nem tempo) suficientes para se gerirem mais de 40 mil casos positivos diários e os contactos de alto risco que cada um deles arrasta consigo. Mesmo com os recentes reforços das equipas de rastreamento, os 720 profissionais de saúde alocados para essa linha de combate não chegam: tinham de ser cerca de 3.000 e cada um precisaria de gerir o dobro dos casos que tem capacidade para atender atualmente — de seis para 12.

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Os médicos de medicina geral e familiar também estão sem mãos a medir: simplesmente não há profissionais de saúde suficientes para gerir atempadamente e com qualidade os casos positivos identificados atualmente, quanto mais se os números continuarem a subir — espera-se que o pico da quinta vaga esteja a ser ultrapassado neste momento e que os casos desçam paulatinamente a partir da próxima semana. Ou seja, mesmo com as unidades de internamento hospitalar mais folgadas do que há um ano, são os cuidados de saúde primários que agora estão em rutura.

As alas Covid-19 podem ficar cheias, mesmo sem pessoas internadas por causa da doença

Em números absolutos, e numa situação limite, as pessoas em internamento ou nos cuidados intensivos podem chegar a ser tantas como as registadas há um ano — basta que o número de casos positivos em simultâneo cresça a esse ponto. Qual seria o ponto de viragem? Os cientistas ainda não sabem: “Ainda não sabemos a taxa de internados desta variante”, explicou Carlos Antunes.

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Sabe-se, no entanto, que “o Serviço Nacional de Saúde não tem capacidade para isso”, alerta o engenheiro: “A pressão hospitalar tem estado baixa e, para já, ainda há margem, mas há fármacos de tratamento de doenças que são limitados. Havendo uma carga elevada sobre os hospitais, arriscamos o esgotamento e uma sobrecarga pode condenar o acompanhamento de outras doenças se for necessário desviar recursos”.

Mesmo com menos pessoas a desenvolver quadros clínicos graves de Covid-19 ao ponto de necessitarem de internamento hospitalar, isso não está a retirar pressão das unidades dedicadas à doença desencadeada pelo SARS-CoV-2. Qualquer pessoa positiva tem de ser hospitalizada nas alas Covid-19, mesmo que a condição que a leve a ser internada nada tenha a ver com o SARS-CoV-2, recorda Carlos Antunes.

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Há quem nunca chegue a ser testado, por isso não tem certificado de recuperação

A capacidade de testagem em Portugal está aquém da que é necessária para tomar as rédeas à quinta vaga, avisa Carlos Antunes, que está a monitorizar a epidemia de Covid-19 há quase dois anos. Prova disso é a taxa de positividade, a métrica que indica quantos casos de infeção se confirmam em cada 100 testes de diagnóstico realizados: as autoridades de saúde consideram que uma epidemia está sob controlo quando essa percentagem não ultrapassa os 4%, mas ela já vai nos 14,5% na generalidade de testes de rastreio e de diagnóstico; e nos 50% contando apenas com os testes PCR.

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A elevada taxa de positividade entre os testes PCR tem uma explicação. Os testes de rastreio fazem-se mesmo quando não se suspeita de uma infeção pelo SARS-CoV-2: podem ser feitos apenas por prevenção antes de um ajuntamento ou para aceder a determinados serviços, por exemplo. Mas, na maioria dos casos, quem realiza um teste PCR já suspeita de uma infeção — ora porque testou positivo a um teste rápido de antigénio e precisa de confirmar o resultado, ora porque é um contacto de alto risco ou desenvolveu sintomas de Covid-19. Mas isso não explica tudo: para que a taxa de positividade baixasse da linha vermelha dos 4%, Portugal precisava de realizar 870 mil testes diariamente. E a média atual é de cerca de 240 mil, ou seja, quase quatro vezes menos.

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Com a sobrecarga nos cuidados de saúde primários e a capacidade de testagem comprometida, há quem nunca chegue a receber as credenciais de que necessita para ser testado, há quem espere tanto tempo por um teste PCR que a carga viral diminua ao ponto de o resultado já ser negativo — mesmo com vários testes rápidos de antigénio a indicar que se esteve infetado. A consequência? Nunca obter um certificado de recuperação da infeção por SARS-CoV-2.

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A cobertura vacinal em Portugal pode não bastar para segurar o vírus

A situação epidemiológica não está mais degradada porque a cobertura vacinal serve de tampão ao surgimento de muitos casos de infeção, a muitos possíveis casos de Covid-19 grave e a muitos óbitos atribuíveis à doença provocada pelo SARS-CoV-2. Mesmo assim, a cobertura vacinal do país mais vacinado do mundo não traz nenhuma garantia de proteção absoluta, alerta o intensivista Tomás Lamas, do Hospital Egas Moniz: não só as vacinas nunca são 100% eficazes, como a variante Ómicron pode ter baralhado as contas à cobertura vacinal necessária para se chegar mais perto da imunidade de grupo.

Quando as vacinas começaram a ser desenvolvidas, havia um número em cima da mesa: era necessário vacinar 75% da população para atingir a imunidade de grupo. O surgimento da variante Delta obrigou a rever a matemática e até o próprio conceito: a cobertura vacinal não podia estar abaixo dos 85% e a imunidade de grupo podia nem sequer vir a ser atingida para este vírus, por isso o melhor era vacinar tanto quanto possível e manter outras medidas não-farmacológicas. Agora, com uma variante ainda mais infecciosa, a percentagem pode ser ainda maior.

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Covid-19 provocada pela Ómicron é tão grave como a de outras variantes

As pessoas que não foram vacinadas contra a Covid-19 e que são infetadas com a variante Ómicron atravessam as mesmas dificuldades que os doentes que necessitaram de acompanhamento médico nas vagas provocadas por outras variantes, acrescentou o intensivista Tomás Lamas. Entre quem não foi vacinado, a Covid-19 “continua a ser a mesma desgraça”, classifica o médico.

Quem não levou a vacina “entra com pneumonias graves e evoluem rapidamente para o ventilador”: “Dizer que a variante Ómicron é menos grave é um bocadinho relativo”, considerou em entrevista ao Observador, recordando que muito do que se sabe sobre o impacto da nova variante no organismo é resultado do que foi observado na África do Sul. “Mas os sul-africanos têm características genéticas diferentes das dos portugueses e têm um sistema de saúde diferente. A avaliação e a evolução da doença também pode ser diferente”, partilhou Tomás Lamas.

Mais: as pessoas vacinadas “também podem ter doença crítica”, mesmo que a evolução tenda a não ser tão grave e o internamento nos cuidados intensivos costumar ser mais curto. Gustavo Tato Borges, presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, confirma que “nunca sabemos a maneira como o corpo vai reagir”, nem mesmo quem não tiver comorbilidades e seguir um estilo de vida saudável: “Há bastantes pessoas que recuperaram e mantêm dificuldades respiratórias”.

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Aliás, sintomas da Covid-19 que podem prolongar-se por meses após a recuperação — mesmo em pessoas saudáveis que desenvolvem quadros clínicos ligeiros, alertou o médico de saúde pública: “Esta variante é tão nova que não sabemos os efeitos a médio-longo prazo”.

Vírus teria mais oportunidade para entrar em mutação e surgir uma nova variante

No pico da carga viral, cada pessoa infetada transporta dentro de si entre mil milhões e 100 mil milhões de partículas virais. Sempre que um destes vírus se replica, a segunda versão não será uma cópia fiel da que lhe deu origem; e cada vez que o SARS-CoV-2 dá origem a uma nova partícula há mais uma oportunidade para o vírus encontrar uma mutação que o pode tornar mais infeccioso ou mais capaz de fintar o sistema imunitário, por exemplo.

O surgimento dessas mutações é aleatório, mas a sua continuidade não: a seleção natural também funciona nos vírus, por isso a natureza vai manter em circulação as alterações genéticas mais benéficas para eles. E “com a mãe natureza não se brinca, essa é uma realidade concreta”, avisou Gustavo Tato Borges.

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Qualquer pessoa infetada pode infetar os outros

Mesmo confiando que passaria impunemente por uma infeção pelo SARS-CoV-2, tem a certeza que o mesmo aconteceria com as pessoas que moram consigo, os idosos com quem convive nos transportes públicos ou os funcionários do supermercado com quem troca dois dedos de conversa enquanto arruma as compras? Estar infetado significa poder infetar os outros, mesmo aqueles que podem sofrer com a Covid-19. Segundo a última atualização das autoridades de saúde, cada 100 pessoas infetada com o SARS-CoV-2 contagiam outras 123 — isto porque o R(t), o índice de transmissibilidade, está nos 1,23.