Título: Do Chiado a Veneza
Autor: Júlio César Machado
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 244

A colecção de viagens da Tinta-da-China, coordenada por Carlos Vaz Marques, veio agora publicar o livro Do Chiado a Veneza, de Júlio César Machado (1835-1890), um dos cronistas mais lidos em Portugal no século XIX. Através do volume, ficamos com as impressões do autor português, lisboeta, jornalista, tradutor, romancista, contista, dramaturgo, folhetinista e cronista.

Em 1886, Júlio César Machado rumou a Veneza. Estávamos em vésperas da Terceira Guerra da Independência italiana e os austríacos prestes a serem expulsos do Véneto. A particularidade destes textos, contudo, é a quase indolência com que o autor encara a convulsão política – como pó passageiro e pouco mais. Assim, procura o que parece intemporal – a arte –, embora esta exista sempre por força da efemeridade – o teatro. Em plena convulsão, o que leva ao seu público é o fugaz, e isto apesar de o apresentar como quase essência de um povo ou identidade de uma nação.

O livro correu bem entre os leitores oitocentistas e será, neste momento, importante como recuperação ou estabelecimento da memória histórica da literatura de viagens, mais do que pelo conhecimento da realidade dada. É que o autor parece deambular num quadro, procurando o romântico e o idílico, daí que soe a coisa estranha o que soa a ironia:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando cheguei a Lisboa, ninguém me perguntou pelo efeito que produzira no meu espírito esse país encantador a que chamam merecidamente o jardim da Europa, não me falaram das noites de Veneza, dos amores nas gôndolas, dos pombos que ao bater das duas horas descem à praça de São Marcos a comer a refeição de cada dia, dos grandes palácios, dos pés pequenos das venezianas, das maravilhas de pintura, de escultura, de arquitectura (…); perguntavam-me no Chiado:

– Em que pé deixou por lá aquela gente?” (p. 25)

O autor parece surpreender-se com quem queria “saber se a miséria levava já Veneza a comer a carne escura dos seus pombos” (p. 25/26). Para o leitor de agora, o conflito parece o mesmo: o cronista dá a fantasia, quem o lê quer a realidade.

Nos textos de Júlio César Machado, a relação com a viagem e, já agora, a relação dialógica entre autor e leitor parecerão ingénuas. Não é que não haja acutilância de observação, mas ao cronista não é possível apanhar o zeitgeist sem enfrentar a vida. Ao limitar o seu olhar à busca da festa ou da fruição da arte, encara-a como festival ou ilusão, como carrossel ou diversão marginal à vida. Assim sendo, até o peso da recepção do texto se esvazia, já que o leitor procura o olhar aguçado sobre o tempo.

A ligeireza do estilo aponta para uma escrita voltada para o presente e não para o futuro. E, mesmo para o presente, procura veicular apenas o supérfluo: na Veneza ainda ocupada, o cronista aparece como um elemento externo, um turista indiferente, e a realidade que dá sabe a coisa pouca. A sua fruição indolente soa a fantasia do romantismo, que sobressai nas descrições, entusiasmadas e intensas, da natureza, como se pode ver:

A viagem pelos Alpes é uma verdadeira festa. Não se faz ideia da magnificência do monte Cenis, daquela natureza grandiosa e excepcional, em que as árvores verdejantes banham os pés no gelo, os riachos a cada passo correm das elevações e fazem brilhar nos rochedos as suas faíscas prateadas, e as nuvens brancas afogam a cumeada dos montes, volteando em redor deles como um bordado!” (p. 26)

A exaltação vive na exclamação, na constante – e exagerada – adjectivação, e na forma como a paisagem sonega a vida. Acaba por ter graça ver a forma como Júlio César Machado aparenta reagir à reacção de quem soube que partiu e que, mesmo antes de o ler, aponta o que ali falta. Assim se entende que ao leitor interessa a vida e não a sua fantasia, ao mesmo tempo que o cronista encara a arte e o sentimentalismo como superiores a qualquer pragmatismo, secundarizando a vida em prol do palco.

As décadas passaram, Júlio César Machado não sobreviveu para lá da vida. Esta colecção que o traz de novo tem o mérito de dar ao leitor português uma visão quase panorâmica de vários tipos de literatura de viagens, e nesse sentido este livro interessa como história, até por valer mais a quem procura a história da crónica do que a crónica.

A autora escreve segundo a ortografia antiga