Título: Porto Atlas. Um livro de fotografia
Fotografia: Manuel Valente Alves
Texto: Maria do Carmo Serén
Design: MVA Estudio
Editora: Afrontamento
Páginas: 369, hard-cover

Calçando os sapatos do turista que deambulando pela cidade vai disparando a sua máquina fotográfica ou o seu telefone esperto — e o livro explicitamente mostra uma série de cenas dessas (pp. 43, 52, 55, …) —, também Manuel Valente Alves se foi encantando com o que encontrou ao longo dos 18 passeios fotográficos que constituem, após apurada triagem, certamente, este Porto Atlas a todos os títulos raro entre nós, sobretudo como registo de como a visita tão massiva de estrangeiros curiosos veio reconfigurar alguns cenários urbanos das nossas principais cidades, seja nos hot spots histórico-artísticos, onde a aglomeração humana exagera e incomoda, seja nos lugares em que o ócio se estende à sombra num jardim ou ao sol numa beira-rio ou beira-mar.

O fotógrafo de paisagens litorâneas que também é pintor de mérito, e curador de exposições de ciência e arte, admite — logo na primeiríssima frase do seu prefácio — que o Porto, cidade de origem medieval, é das que mais o fascinam e que decidiu fazer um livro que “simultaneamente mostrasse este meu sentimento e cruzasse o olhar fotográfico com a história e o design, numa homenagem a esta cidade que eu tanto amo” (p. 7). Por história entende ele, aqui, o “ensaio narrativo” de Maria do Carmo Serén, e por design o do próprio livro, criação de Nina Szielasko.

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Decidido em 2018 e registado em 2019, este portefólio é, portanto, o testemunho mais recente possível, descontada a pandemia, do formidável movimento pendular humano que percorre a urbe. É o ar livre que — uma vez mais — cativa Manuel Valente Alves: “o ambiente de uma beleza e luminosidade extraordinárias” (tb. p. 7). Luz de Verão, deve dizer-se, sem que o autor se dispusesse a inquirir quanto há de especificamente local nos dias de neblina e céu plúmbeo na cidade de tanto granito, com “timbre pardacento” evocado por uma canção popular, muito embora as aquarelas de António Cruz (1907-83) bastassem para lhe exigir tal exercício. Não há interiores das admiráveis igrejas ou dos históricos cafés e lojas do Porto, o Museu Nacional Soares dos Reis é apenas antevisto num fachadismo oblíquo do Palácio das Carrancas e a bela fonte do seu jardim mostrada como se de um recanto de bairro se tratasse, a Casa de Serralves surge sobretudo na condição de objecto de arquitectura enquadrado num parque, e a Casa Roque, há pouco renovada como centro de arte contemporânea num pólo da cidade em reconversão urbanística actual, Campanhã, escapou de todo à atenção do fotógrafo andarilho. A noite — quando, afirma-se amiúde, a beleza dos pequenos pormenores jamais entrevistos à luz do dia sobressai e resplandece como nunca —, sendo por isso especial chamariz para artistas, tão-pouco comparece nas muitas dezenas de imagens aqui compactadas num folhear contínuo, sem brancos ou legendas indicativas (sequer páginas numeradas que a elas remeta), que apenas é interrompido para se anunciar o percurso seguinte (“Do Jardim do Carregal ao Largo dos Lóios”, ou “Caminhos do Romântico”, ou “Dos Clérigos a Cedofeita”, por exemplo).

Rapidamente salta à vista, por outro lado, que apesar do elogio recorrente da arquitectura na cidade histórica — todo um compósito de estilos e épocas que a exímia justaposição dialogante de imagens no livro sublinha uma vez mais —, o fotógrafo subestimou o excelente trabalho que o Município dirigido por Rui Moreira tem feito nos últimos anos, com o premiadíssimo Eduardo Aires, para afirmar na vida quotidiana do Porto a presença de um design gráfico contemporâneo de grande qualidade (aliás, iconicamente renovado e recriado em permanência) e que é hoje algo que distingue bastante o Porto entre as cidades portuguesas, continentais ou insulares, e reforça o seu prestígio internacional. É preciso estar muito atento aos pormenores mais pequenos para se vislumbrar os celebrados ícones da cidade num painel de obras à entrada no metropolitano junto à Rua das Flores…

Em contrapartida, se assim se pode dizer, Valente Alves aproxima resolutamente a cidade do seu rio e mar, algo que nos é anunciado desde a capa, que — à vista de outros trabalhos do artista — é muito mais do que a recusa sensata dos estafadíssimos motivos da Ribeira até à Sé ou da Praça da Liberdade (antiga D. Pedro V, ou dos Aliados). Logo no capítulo inicial, “Miragaia”, duas das oito fotografias deitam vistas sobre o Douro ou espreitam-no do alto, numa nesga entre edifícios, e vai-se por ali fora sempre que os passeios fotográficos se aproximam da Foz ou avistam o porto de Leixões. Uma das fotografias de “Da Ponte da Arrábida ao Museu do Carro Eléctrico”, com o Douro virado a juzante, dá-nos impressionante medida da grande massa líquida entre margens. As últimas imagens do livro são, não por acaso, certamente, uma caiaquista solitária (p. 335) e um casal em passeio numa lancha (p. 356). A fotografia reconhece, exibe, propõe uma cidade virada à renovação perpétua da vida que a proximidade da água oferece a todos — sem muros sociais — no usufruto gratuito e livre de espaços públicos convenientemente qualificados para práticas de lazer e desporto.

Dá-nos também a perspectiva duma cidade em que o verde (e não me refiro ao relvado do Estádio do Dragão!…) está muito mais presente do que poderíamos supor no corpo do tal “milhafre ferido na asa”. Parques, alamedas e ruas arborizadas, recantos de jardins privados ou públicos, paisagismo envolvendo hospitais e escolas, ocupam páginas deste livro, num manifesto pela vida fora de casa. A magnífica fotografia do Jardim do Roseiral do Palácio de Cristal (p. 112) é o retrato — entre outros — dum pequeno paraíso urbano que todos podem franquear, e só podemos lamentar que Manuel Valente Alves não tenha fotografado o Porto em Março (as suas incursões foram seguramente de veraneio), aproveitando a floração das camélias, verdadeiro ex-líbris da cidade. O “romântico” local proporcionou-lhe, contudo, uma sequência magnífica, provavelmente a melhor de todas, em que uma vista descendente da Rua de Entre Quintas se conjuga com o momento em que uma rapariga muito bela — qual odalisca contemporânea! — ali desce de um muro alto (pp. 118-19).

De alguma maneira, um belo livro demonstrando como visitantes estrangeiros ocupam e usufruem uma cidade portuguesa, o que pode servir de lição para os de cá, ajudando-os a ver e perceber o bom diante dos seus olhos que de tão familiarizados se desabituaram de ver. Acontece muito. Mas ainda vamos a tempo!

O autor escreve segundo a antiga ortografia