Num passado aparentemente distante, quando a pandemia era ficção científica e o cinema ainda era – talvez – a demonstração narrativa mais popular ou consensual, cheguei a juntar-me com vários amigos para assistir às cerimónias de entrega dos Óscares. Tal evento era muitas vezes abrilhantado por jogos de Bingo feitos à medida, tentando preencher quadradinhos com coisas que tínhamos bastante convicção que iriam acontecer: vamos irritar-nos com o comentador português a falar por cima dos discursos; o Jack Nicholson vai estar na fila da frente; uma comédia indie vai ser nomeada para Melhor Filme mas nunca na vida vai ganhar. O mundo (e o cinema) podem ter mudado muito desde então, mas a comédia indie da praxe lá continua, surpreendendo por vezes com o galardão de Melhor Argumento, mas nunca conseguindo rivalizar com o romance histórico ou drama confidencial que vai limpar o maior prémio do longo serão. Uma comédia fofinha, com bons personagens, com coração, mas nem pensar considerar Melhor Filme uma coisa para rir. Raríssimas vezes aconteceu na História da Academia.
O problema é que, por motivos que não cabem neste artigo, o cinema de grande distribuição está cada vez refém de remakes, sequelas e prequelas. O espaço de criação (e ganho muitos ódios de estimação junto dos cinéfilos de cada vez que faço esta afirmação), pelo menos ao nível do mercado anglo saxónico, está cada vez mais nas séries. Há muitas séries a tomarem a herança narrativa que até há poucos anos era mais habitual no grande ecrã. Enfim, tudo isto para vos dizer que “Somebody Somewhere”, que se estreia na HBO esta segunda-feira, 17 de janeiro, soa a comédia indie nomeada para os Óscares, mas em série. Pequeno problema: tem atributos que cheguem para duas horas numa sala escura, mas não tem ar nos pulmões que justifique sete episódios. Nunca é fraco, mas poderei ou não ter passado pelas brasas com um bloco de notas nas mãos.
[o trailer de “Somebody Somewhere”:]
https://www.youtube.com/watch?v=AReWFGoUmHY&t=80s
Criada por Hannah Bos e Paul Thureen e co-produzida pelos cada vez mais omnipresentes Duplass Brothers, a HBO apresenta “Somebody Somewhere” como “uma nova comédia” — mesmo que, espremido, talvez de comédia tenha assumida e conscientemente pouco. Aqui acompanhamos Sam (Bridget Everett, colaboradora regular de Amy Schummer), uma mulher na casa dos 40 anos, de regresso ao Kansas da sua adolescência para tratar de uma irmã, Holly, em fase terminal de um cancro. Holly morreu há um ano e Sam continua presa no Kansas, presa na sua vida, presa ao sofá da sala – já que nem consegue a coragem para se mudar para o quarto da irmã que entretanto partiu. Temos assim uma protagonista a braços com perda e aceitação, numa viagem de autodescoberta que a leva a uma comunidade de inadaptados que se encontram num grupo coral de uma igreja. A moral da história, segundo o próprio canal, é “mostrar que encontrar as tuas pessoas, e encontrar a tua voz, é possível. Em qualquer lado.” É indie, mas com uma camada de autoajuda tão em voga se passearem pelos escaparates de uma Fnac.
O argumentista e autor Nuno Costa Santos criou há largos anos o conceito de “melancómico”, uma mistura fina entre comédia e melancolia. E esta é uma tendência cada vez mais marcada numa lógica de séries, de “Louie” (de Louie CK) a “After Life” (de Ricky Gervais): a de se apresentar como uma comédia, dados os seus protagonistas, mas estar muito mais focada na melancolia e até na angústia. Em “Somebody Somewhere” não é diferente: poucos segundos depois de vermos pela primeira vez a personagem principal estamos já a vê-la a chorar, quando ainda não sabemos praticamente nada sobre ela.
A braços com o luto (da irmã) e a luta (mas uma luta branda, circular, quase a desistir), Sam está aqui para nos representar de todas as vezes que sentimos esse fado tão humano que é o de acharmos que não pertencemos. Pode ser numa circunstância específica, numa onda passageira ou de uma forma mais consistente, mas é uma daquelas circunstâncias que já nos acolheu a todos. Aqui temos uma protagonista ainda atormentada pelos anos de liceu (numa cidade onde se cruza com ex colegas constantemente e na qual há inclusivamente uma livraria a vender uma autobiografia supostamente escandalosa de uma ex-némesis de adolescência), que encontra o sentimento de pertença exatamente através de um antigo companheiro de escola, Joel (Jeff Hiller).
Sam não se lembra de Joel, mas Joel não só se recorda como a considera “a big fucking deal” e a trata como uma celebridade. Algo que a protagonista está longe de ser. Esta não é a clássica bengala de plot “mulher de sucesso volta às origens à força e reencontra o significado da vida”. Sam nunca teve sucesso, nunca teve um rumo e nem sabe quem que raio quer reencontrar – algo que lhe é esfregado na cara por outra irmã, Tricia, que é a versão humana e suburbana daquelas plaquinhas foleiras em madeira que dizem “live, love, laugh”.
O encontro de Sam com uma certa ideia de pertença dá-se então no coro de uma igreja presbiteriana, onde todos os misfits se encontram numa sala sem janelas na qual os juízos de valor ficam à porta. Ali, cada um se presta à arte que mais lhe diz, desde ler diários da irmã ao microfone a cantar êxitos de Gloria Estefan. Ninguém é muito talentoso, mas é a libertação e a comunhão que importam, numa espécie de “Glee” dos verdadeiramente inadaptados, dos que já passaram a esperança teen e estão bem enterrados na idade adulta.
“Somebody Somewhere” não é um desperdício de tempo, mas falta-lhe ser algo mais do que um pastiche de outras comédias indie a apelarem à tristeza. Nesse campeonato de “mulher adulta regressa a casa sem saber como gerir a vida”, “Back To Life”, disponível na Disney Plus e na Filmin, é bastante superior. Boa sorte a Sam, mas a sua busca interior não me emocionou.