O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República aproveitou o parecer pedido pelo Governo — relativamente à forma como poderiam os eleitores confinados votar — para deixar alguns recados ao Governo e até ao Presidente da República. Ao longo de 21 das 75 páginas do documento, os membros deste órgão lembram que foram restringidos vários direitos, liberdades e garantias ao longo dos últimos dois anos de pandemia, independentemente de ser declarado o estado de emergência ou a situação de calamidade, o que levantou mesmo questões constitucionais. Já em resposta ao pedido do Ministério da Administração Interna (MAI), os membros do conselho não foram mais brandos: lembraram que a lei eleitoral aprovada para as eleições que decorreram em 2021 excluiu uma boa parte dos eleitores do direito fundamental de sufrágio. Uma lei que recomendam mesmo que seja revista, até porque quem impedir alguém de votar incorre num crime de prisão de até cinco anos.

O que pediu o Ministério da Administração Interna ao conselho?

O MAI fez duas perguntas à PGR: podem os eleitores infetados e confinados sair de casa para votar e, se sim, em que condições. E perguntou ainda se podem os coabitantes de infetados sair para votar e em que condições. Isto, porque, explica o MAI, a lei eleitoral em vigor, aprovada em 2020, criou um regime excecional temporário do direito ao voto antecipado, para quem esteja confinado, até ao oitavo dia anterior à votação, podendo a sua votação ser recolhida em casa. Mas com a redução do tempo de confinamento, muitos eleitores deixam de ser abrangidos por esta lei, só lhes restando o voto presencial.

O que concluiu o órgão consultivo?

O Conselho concluiu que a lei aprovada em 2020, para permitir o voto antecipado aos confinados (que foi depois prorrogada por outra lei em 2021) mesmo antes dos novos períodos de confinamento já deixava de fora muitos eleitores, os que ficassem confinados após os oito dias antes da eleição. Isto significa que, de acordo com esta lei, o direito ao voto esteve paralisado em 2020 e 2021 e “é manifesto que esta é uma interpretação inconstitucional”. Nenhum órgão de soberania, “conjunta ou separadamente”, pode “suspender este direito”, adverte o conselho, que não deixa também de sublinhar todas limitações impostas para este voto antecipado: como os confinados terem de estar na área do local de recenseamento ou no concelho limítrofe ou em residências ou instituições para poderem votar; e ser a Direção Geral da Saúde a dar os dados de todos os confinados às autarquias para a recolha dos votos.

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Uma medida que, na opinião do Conselho, mesmo que para salvaguardar o direito à saúde, não era necessária porque podia recorrer-se ao voto eletrónico, por correspondência ou através da recolha de boletins nos domicílios. “Todas estas formas inovadoras de exercício do direito de voto permitem a compatibilização do direito de sufrágio universal, como impõem a Lei Fundamental e os textos internacionais”, lê-se.

Mais: o conselho notou na sua apreciação que a própria lei eleitoral em Portugal é por si só violadora do direito ao sufrágio e terá que ser completamente revista quando houver Governo. Isto, porque permite o voto antecipado para doentes infeciosos, com outras doenças além Covid-19, e aos reclusos, mas exige que seja feito com tanto tempo de antecedência que acaba por deixar de fora um conjunto de eleitores (que fique entretanto doente ou que seja preso).

A certa altura, o Conselho lembra mesmo que do regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias, a violação do direito de sufrágio, assim como de outros direitos, liberdades e garantias pode “gerar responsabilidade criminal”. Quem impedir alguém de votar, recorda, incorre numa pena de prisão de até cinco anos.

Então qual foi a solução encontrada?

Assim, a única forma encontrada pelo conselho, e que o Governo já anunciou que vai adotar para o próximo dia 30 de janeiro, é permitir que todos os infetados e quem com eles habite saiam de casa para votar. Para isso é necessário mudar a lei do confinamento, para que não incorram num crime de desobediência, e é preciso preparar os locais de voto. O conselho consultivo da PGR recomenda que seja adotado um horário próprio e lembra todos os cuidados que devem ser mantidos, como a higiene e o distanciamento de segurança. Recomenda também que nestes locais estejam elementos da PSP e da GNR para controlar se as regras são cumpridas, mesmo as que se aplicam aos positivos, com Covid-19 — porque caso não tenham os devidos cuidados podem incorrer num crime de propagação de doença.

Que recados deu o Conselho Consultivo da PGR ao Governo e ao Presidente da República?

Os oito elementos que constituem o conselho admitem que não lhes foi pedida uma posição sobre as restrições dos direitos, liberdades  e garantias que foram impostos nos últimos dois anos, certo é que não deixam de dissertar sobre elas ao longo de mais de 20 páginas do parecer, nas quais lembram mesmo (e fazem referência a algumas) decisões dos tribunais que consideraram haver alguns excessos.

Assim, o órgão consultivo faz uma resenha de todos os períodos de estado de emergência registados desde o 19 de março de 2020, altura em que ficaram suspensos os direitos de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional, da propriedade e iniciativa económica e privada, os direitos dos trabalhadores, a circulação internacional, o direito de reunião e de manifestação, a liberdade de culto, a liberdade de aprender e ensinar e o direito à proteção de dados pessoais.

Sublinham que quem violasse as restrições incorria num crime de desobediência e que isso foi sendo reforçado ao longo de várias decisões em Conselho de Ministros, mesmo depois de ser declarada a situação de calamidade, já em maio de 2020, — situação que se prolongou até final de julho, quando foi declarada a situação de contingência. Em todas estas fases foram feitas restrições aos confinados que ainda hoje se mantêm.

O conselho lembra também que a 14 de outubro de 2020 se regressou à situação de calamidade, renovada até 30 de abril de 2021. E recorda como os idosos foram equiparados nas eleições Presidenciais aos confinados, sendo obrigados a votar antecipadamente. Ou como no fim de semana eleitoral se restringiu o direito de livre deslocação, permitindo-o apenas para votar.

Durante todos estes períodos manteve-se a medida de confinamento obrigatório dos doentes, dos infetados e de outros cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tivesse determinado a vigilância ativa”, sublinha o parecer.

Atualmente a situação de calamidade decretada por resolução do Conselho de Ministros veio reforçar que compete às forças e serviços de segurança, às polícias municipais, à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e à Autoridade para as Condições do Trabalho fiscalizar o cumprimento da resolução, seja na via pública, nos estabelecimentos comerciais e de restauração e em locais de trabalho, destacam também os membros deste órgão da PGR.

Porém, lembram, mesmo o estado de emergência contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, “mas em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.

O conselho lembra que “tem sido questionada a conformidade constitucional (…) de algumas das medidas adotadas, no âmbito da emergência da pandemia da doença de Covid-19, ao abrigo do direito administrativo, incluindo a medida de confinamento obrigatório”. E que até são “muitos os textos doutrinários que tratam essas questões e já foram emitidas algumas decisões judicias sobre a matéria”.

No entanto, dada a “natureza urgentíssima” do pedido do Governo, “neste parecer não será questionada a validade das normas que determinam o confinamento obrigatório, antes as respostas às questões colocadas” que pressupõem essa validade — “o que não constitui”, ressalvam, “uma tomada de posição deste Conselho Consultivo sobre a matéria”.

O Conselho Consultivo é formado pelo Procurador-Geral da República (que preside) e por vogais da área da justiça, entre magistrados do Ministério Público, preferencialmente, de entre procuradores-gerais-adjuntos, magistrados judiciais e juristas de mérito.

Leia aqui o parecer integral.