Rio de Janeiro, 2016. O cenário é de malandragem, a Lapa, no centro da cidade, meca da cachaça e da vadiagem, capital da boémia onde se ergue uma tenda na sombra do aqueduto. No interior, na medula do palco, estranhamente, está um trono. É o concerto de apresentação de A Mulher do Fim do Mundo, o novo álbum – e nova vida — da carioca Elza Soares (que morreu a 20 de janeiro, aos 91 anos), essa mesmo, ainda alguém se lembra? Ex-mulher de Garrincha, cantora de bossas, samba-jazz e sambalanços. No recinto do Circo Voador, sala de espetáculos icónica da cidade maravilhosa, esgotado há semanas, ainda estão todos para crer se de facto a mulher que vai subir ao palco é a mesma que, em criança, depois de Ary Barroso gracejar com a sua roupa desajeitada, e perguntar de que planeta ela vinha, respondeu sem pestanejar: “planeta fome”.

A descrença da plateia é natural: afinal, o nome Elza Soares não era enunciado em voz alta há mais de dez anos; e agora, sem, qualquer tipo de aviso — olhe lá que vem obra-prima — era lançado A Mulher do Fim do Mundo, o álbum brasileiro do século, um evento catártico, de viola afiada, percussão nervosa, assombrado pelos espectros de sambas passados, do início, ou melhor, do fim dos tempos. É um apocalipse musical, o renascimento da música popular brasileira. Ao leme desta regeneração estavam um punhado de paulistas que criaram o seu próprio planeta, mais cerebral que de fome, o samba sujo de Douglas Germano e Kiko Dinucci, as guitarras desconcertantes de Rodrigo Campos, o mordaz Romulo Fróes, o maestro Guilherme Kastrup, os metais delirantes de Bixiga 70. Em resumo, o melhor que se fazia no Brasil onde ninguém estava a olhar. E naquele instante, Elza Soares sobe ao palco e senta-se no trono.

“Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés”

A cantora, que aos 21 anos já tinha mais vida que qualquer um de nós, funcionária numa fábrica de sabão, viúva e com dois filhos mortos, de fome, não estava a cantar as lágrimas com leviandade. A Rainha do Samba, que na década de sessenta Elza Soares era uma das principais cantoras do género, com uma sequência invejável de clássicos absolutos: O samba é Elza Soares, Sambossa, Na roda do samba, Um show de Elza.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé”

E repentinamente, no auge do sucesso, os tabloides descobrem que um dos melhores jogadores de todos os tempos, Mané Garrincha, deixou a mulher para estar com Elza Soares, o escândalo.

“Pirata e Super-Homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão”

A sambista passou a ser odiada, acusada em praça pública de embriagar Garrincha, e indiferente ao mau-olhado, continuou a sambar, nova década de hinos, acarinhada pela última fornada de sambistas, de “Bom Dia Portela” a “Salve a Mocidade”, uma eternidade de samba-canção. Nos bastidores, entre milhares de concertos, soubemos mais tarde, era vítima de violência doméstica.

“As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor”

No trono, rodeada de dançarinos, trompetistas, percussionistas e uma série de outros súbditos, a regente está no auge do seu canto, daquela quentura de scat com rouquidão que dizia ter aprendido na favela, na companhia dos louva-a-deus. E anuncia o convidado surpresa: Caetano Veloso. Foi precisamente este baiano, em 1984, que decidiu estender a mão a sua majestade, durante o primeiro ostracismo da longa carreira, e compôs-lhe o burlesco samba-rap “Língua”, que agora cantam em dueto no Circo Voador. O dueto seguinte é “A Carne”, do álbum mais experimental de Elza Soares, Do Cóccix até o Pescoço, a convite de Zé Miguel Wisnik, um dos protagonistas da nova canção, de Seu Jorge a Lobão, que abraçam a diva após o consentimento inicial de Caetano Veloso.

Vemo-nos depois do fim do mundo, Elza Soares

Em 2002, era uma Elza Soares novamente viúva, com outro filho fatalmente morto, desamparada, e ao mesmo tempo, no seu terceiro ou quarto renascimento musical, se é que alguém ainda estava a contar. O mantra “A carne mais barata do mercado/ É a carne negra”, cantado por uma bisneta de escravos, é uma das suas primeiras canções de resistência, que seriam, até hoje, a grande herança social de Elza, a cantiga como arma, seja a denunciar as injustiças sociais, o racismo ou a violência doméstica:

“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo se você se aventurar”. 

A plateia do Circo Voador está rendida, em reverência, escorrem lágrimas de júbilo, quem diria, desde “A Carne” no longínquo 2002 que não se dava atenção à sambista, e neste momento, em frente ao seu trono, nasce um séquito de jovens, negros, brancos, gays, uma nova geração que se orienta pela estrela polar Elza Soares, um eco para as questões de negritude, feminismo e LGBT. É a sétima, e quem sabe definitiva, vida de Elza Soares. As vénias avolumam-se, a mulher do fim do mundo sorri, deixa na avenida a pele preta, a sua voz, e canta, até ao fim:

“Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar”