Bela Hazan, uma judia de 19 anos, fez-se passar por uma polaca cristã e conseguiu emprego como rececionista na sede da Gestapo. Uma vez lá dentro, dedicou-se ao roubo de documentos e, depois, levou-os a um pequeno escritório de falsificação, onde foram impressos folhetos que permitiram a vários judeus, sob identidade falsa, fugir. Um membro da Gestapo até se apaixonou por ela e convidou-a para uma festa de Natal. Bela não podia recusar para não levantar suspeitas e, então, foi ao evento natalício com outras duas amigas judias e apresentou-as como sendo suas primas.

“A cultura nazi era sexista, então as mulheres não eram suspeitas”, enfatiza Judy Batalion, autora do livro “Resistentes” (Editora Crítica 2021).  “Como é que uma bela jovem poderia carregar uma bolsa cheia de munições? Não lhes passou [essa ideia] pela cabeça”

Pré-publicação. As mulheres judias que combateram nos guetos de Hitler

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Bela foi só uma das muitas mulheres que arriscaram a própria vida para que centenas de judeus escapassem às garras dos nazis. Algumas já tinham fugido da Polónia e decidiram voltar ao coração do horror para ajudar quem lá ficou. A história de resistência destas jovens foi praticamente desconhecida até ao ano passado, quando a escritora Judy Batalion a contou pela primeira vez. E nesta quinta-feira, dia em que se assinalam os 77 anos da libertação de Auschwitz, vale a pena recordar o papel destas mulheres, muitas delas jovens e até adolescentes.

Libertação de Auschwitz: 77 anos do extermínio que chocou o mundo

De todas as histórias, há uma que não deixa de comover Batalion. A de uma jovem que seduziu os seguranças da Gestapo para chegar até ao escritório e matar com um tiro na cabeça o oficial, recordou esta quinta-feira a escritora à agência Europa Press. Mas também, “as das mulheres a quem mandavam fazer trabalhos forçados e que podiam ter evitado a morte, mas para que as mães ou os filhos não fossem sozinhos para as câmaras de gás foram com eles” e morreram.

No sua luta contra os nazis, as jovens escondiam documentos nas roupas e lâminas de barbear nos cabelos, pistolas, granadas ou dinheiro em ursos de peluche ou dentro do pão. Namoriscavam com os nazis, os quais enganavam com vinho e whisky, para depois os matar (discretamente com um tiro). “Construíram” escolas nos guetos, onde as crianças não se conseguiam concentrar por causa da fome e, para essas zonas de segregação, levaram livros, comida e remédios. Boicotaram o abastecimento de cidades, como o de Vilnius, e armadilharam linhas de caminho de ferro alemãs. Uma delas, conta Batalion, fez mesmo explodir uma carruagem.

Uma trabalhavam em rede, outras sozinhas. Foi o caso de Niuta Teitelbaum, com uma cara de boneca inocente. Numa das suas ações, disfarçou-se de médica e matou um agente da Gestapo e o seu guarda. Noutra, conseguiu entrar no edifício da polícia nazi em Varsóvia, segredando ao guarda que tinha um assunto pessoal para tratar com um oficial. No escritório do “namorado” puxou de uma arma com silenciador e deu-lhe um tiro na cabeça, saiu calmamente e sorriu docemente para os guardas que a tinha deixado entrar. Niuta acabou mais tarde por ser detida, torturada e morta pela Gestapo aos 25 anos.

As 700 páginas do livro “Resistentes” são a concretização de uma década de pesquisa, já que nem a escritora, ao início, conhecia estas ações. “Pertenço a uma família de sobreviventes do Holocausto. Estou muito envolvida na cultura e literatura judaica. Tenho um doutoramento em História da Mulher. E eu nunca tinha ouvido falar das centenas, senão milhares, de jovens judias envolvidas em atos de resistência contra os nazis”, confessa Batalion ao El Mundo. 

A escritora elucida que são várias as razões que justificam o desconhecimentos destas heroínas, tais como a história do Holocausto ter sido moldada pela política e ser diferente consoante o país e o zeitgeist cultural: o interesse por determinado elemento do Holocausto muda conforme o momento histórico.

E, depois, existem os motivos pessoais. Primeiro, muitas das que sobreviveram simplesmente não contaram a sua história e, as que contaram, ou eram desacreditadas ou eram acusadas de ter colaborado com o regime nazi.

Se alguém sobreviveu, muitos consideraram que foi porque fizeram algo imoral ou pouco ético. Além disso, estas mulheres sentiam uma culpa tremenda. Muitos delas abandonaram as suas famílias para lutar na clandestinidade. E também consideraram que, em comparação com os sobreviventes de Auschwitz, não tinham passado momentos tão maus, que não mereciam contar a sua história. A culpa do sobrevivente era muito aguda. No fim da guerra, sentiram o dever cósmico de repovoar o povo judeu. Tiveram filhos e quiseram criá-los em ambientes felizes e normais”, explica.

A verdade é que as judias conseguiam agir disfarçadamente ao contrário dos judeus. Por exemplo, elas não podiam ser identificadas fisicamente, enquanto eles, sendo circuncidados podiam.

Foi exatamente desta vantagem que Lonka Kozibrodska tirou proveito: um dia, quando ia apanhar o comboio, apercebeu-se que a Gestapo estava a revistar a bagagem de todos e, para azar, ela tinha uma bolsa cheia de material de contrabando. Aproximou-se de um polícia nazi e pediu-lhe que a ajudasse a colocar a mala no comboio, pois estava muito pesada e ele assim o fez, não a inspecionando.  Já Renia Kukielka teve de saltar, aos 18 anos, de um comboio em andamento para não ser descoberta: funcionava como correio levando armas e comunicações secretas entre os grupos resistentes de judeus da Polónia.

Todavia, elas não eram ingénuas, alerta Judy. Apesar dos esforços, elas sabiam que não iam derrotar o exército alemão.

Arriscavam a vida todos os dias pela liberdade, justiça e dignidade. Creio que a mensagem que nos deixaram é que os pequenos atos são importantes. Esses atos foram pelas pessoas à sua volta e, sem dúvida, para aqueles que resgataram”, destaca.

A escritora, descendente de sobreviventes do Holocausto, cresceu a ouvir histórias de dor e sofrimento, acreditando no “mito da passividade judaica”.

Tive uma espécie de sentimento de vergonha. Quando encontrei as histórias impactantes destas mulheres, compreendi que a história dos judeus na Polónia é uma história de luta, desafio, resiliência e resistência constantes. Os judeus enfrentaram uma força militar brutal e sádica que os matou, mas não porque não resistiram ativamente o tempo todo. Este projeto lembrou-me que não é só o trauma que passa de geração em geração, mas também a força, coragem, bravura, paixão e compaixão.”

A maior coleção de documentos em iídiche. O “tesouro” dos judeus que quase foi destruído pelos nazis

O livro nasceu de um acaso, quando Batalion vivia em Londres e estava em grande ansiedade, questionando-se se seria por causa da sua identidade judaica. Numa ida à Biblioteca Britânica, deparou-se com “um livro antigo encadernado em tecido azul gasto e com o título em letras douradas”, recorda. Chamava-se Frauen in den Ghettos (Mulheres nos Guetos), foi escrito em iídiche e contava várias histórias de mulheres judias que estiveram na resistência contra os nazis. Aquelas narrativas fascinaram-na e assim nasceu “Resistentes”, livro que captou a atenção de StevenSpielberg. O realizador de cinema já adquiriu os direitos para fazer um filme, para o qual Batalion está a fazer o argumento.