Numa qualquer manhã sem história do ano de 1942, as crianças da escola hebraica de Bardejov, uma pequena cidade balnear na fronteira entre a Eslováquia, a Polónia e a Ucrânia, ocupavam os seus lugares habituais na sala de aula. Havia livros, chá, açúcar, malas, cadernos, desenhos. Foi na manhã em que as tropas nazis entraram da cidade e deportaram os seus 3700 judeus e, entre eles, as crianças daquela escola, na sinagoga local. Tudo ficou para trás e a historia desta escola acabou ali. Nunca ninguém voltou para recuperar aqueles livros, aquelas pastas, aquele açúcar. Também não veio ninguém cuidar das memórias da passagem do povo hebraico pela Eslováquia. Nenhum regime, nenhum partido, nenhum político. Depois de apagadas as pessoas, procurou apagar-se a memória da sua passagem por este mundo “um outro genocídio” afirma a cineasta eslovaca Katya Krausova.

Quis o acaso que fosse ela, cineasta e Yuri Dojic, fotografo, ambos no exílio depois da Primavera de Praga, em 1968, os que receberam a chave daquela sinagoga, daquela escola e foram os primeiros a lá entrar quase 70 anos depois dessa manhã de 1942. “Tudo estava intacto, como se o tempo tivesse parado. Apenas os bichos vieram, as traças, os ratos, roer o que podiam, vieram as aranhas fazer teias, vieram as estações, o frio, o calor. Era uma bela sinagoga de estilo neo-árabe, com um mikvah (tanques para os banhos rituais), vitrais, agora é uma ruína. É quase um milagre que, apesar de tudo ainda esteja de pé”, explica ao Observador Katya Krausova, comissária desta grande exposição que abre esta quinta-feira ao público no Museu Coleção Berardo, em Lisboa, onde ficará até ao fim de Maio deste ano.

Escola hebraica de Bardejov, Eslováquia, como Yuri Dojc e Katya Krausova a encontraram, em 2005

Hoje, quando passam 77 anos sobre a libertação do campo de concentração de Auschwitz, na Polónia, e para onde foram deportadas as crianças desta escola e a maioria dos judeus do território que é hoje a Eslováquia, abre-se o livro e lê-se a última folha de uma história que parece não ter fim: o apagamento dos judeus na Europa, ou aquilo que o filosofo e escritor italiano Claudio Magris chamou “a doença do anti-semitismo”.

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“Last Folio”, com os seus quase 100 objetos, entre filme, fotografias, livros, rolos de orações, filactérios,  não é um filme de Spielberg, nem um romance com a palavra “Auschwitz” escrita na capa em letras gordas, também não é uma história de heróis como Aristides Sousa Mendes. Sequer é uma viagem nostálgica dos artistas aos campos e baldios da sua Eslováquia Natal. Dojc e Krausova querem afinal, falar mais dos vivos que dos mortos e querem dizer-nos uma coisa muito simples: a mesma Europa católica que fechou os olhos a Hitler, fechou depois os olhos e tentou apagar os judeus da sua história, abandonando o seu rasto, o seu legado, os seus livros, os seus cemitérios, as suas sinagogas, até ao presente onde, nessa mesma Europa central que fez nascer o Terceiro Reich, nasce agora uma nova onda de anti-semitismo. “Nova não”, afirma Krausova, “sempre foram anti-semitas e nunca deixaram de ser”.

Porque depois das cinzas vem o esquecimento com o seu jeito silencioso de matar sem gerar gritos, “Last Folio” é um gesto de resistência contra o apagamento da história, pois dele só poderá vir a repetição da história. Também por isso, a exposição portuguesa vai ter livros raros sobre a Inquisição, e que foram emprestados por um colecionador privado.

Rita Lougares, diretora do Museu Berardo, que desde 2019, lutou para ter cá esta exposição, concorda que Portugal tem que se confrontar com a sua história, tem a sua parte de culpa na tragédia judaica na Europa e, por isso diz “fazer questão de ter ali os livros sobre a Inquisição Portuguesa”.

Uma vez que a pandemia e os confinamentos, de 2020 e 2021, deixaram o museu sem dinheiro, a exposição teve que ser adiada e “só foi possível devido à ajuda das embaixadas da Eslováquia, do Canadá e da Alemanha e de Israel”, assume Rita Lougares ates de explicar a importância desta exposição: “‘Last Folio’ é sem dúvida uma experiência dolorosa e profunda, um espaço que expõe a destruição cultural de uma civilização, um espaço de meditação que nos obriga a reagir, a refletir, a questionar o mundo em que vivemos, onde muitos ainda não têm voz, e a exigir que a liberdade e a tolerância sejam os valores fundamentais do século XXI.”

Livro em hebraico encontrado em Bardejov, 2006. Fotografia de YuriDojc

Livros com lágrimas dentro

 Nenhum céu estrangeiro me protegia, nenhuma asa estrangeira me cobria o rosto. Ergo-me como testemunha de um fado comum, sobrevivente daquele tempo, daquele lugar.” Anna Akhmatova

Este excerto de um poema da poeta russa Anna Akhmatova é a epigrafe escolhida por Yuri e Katya para esta sua viagem à qual chamaram “Last Folio” ou “Última Folha”. Embora ambos sejam descendentes de judeus eslovacos e tenham perdido toda a família nos campos de concentração, os seus pais pouco lhes falaram disto. Os sobreviventes quiseram também eles apagar esta história, ou não tiveram ninguém que insistisse em ouvi-la. Os próprios Yuri e Katya, só depois de terem acidentalmente descoberto aquela sala de aula intacta perceberam o quão sabiam pouco sobre a história e a cultura judaica. Portanto, estas obras  são também um confronto  pessoal, intimo dos dois artistas, com a sua herança judaica e o que fazer com ela.

“Last Folio” não é apenas sobre livros que morrem e livros que encontram as mais estranhas formas de persistência, não é só sobre a relação primordial do povo judeu com os livros e com a palavra. É também sobre o quase total desaparecimento dos que conseguiram sobreviver ao extermínio mas não à passagem do tempo, sobre o inexorável desaparecimento de cada história individual.

O pai de Yuri Dojc, a celebrar a Hanukkah, pouco antes de morrer. Fotografia Yuri Dojc

Por isso, esta é uma exposição que nos induz, logo à partida, um silêncio tenebroso, angustiante. Embora o espaço expositivo tenha duas entradas e duas saídas, aconselhamos começar por ver o filme de vinte minutos realizado por Katya Krausova. O documentário tem no total uma hora e vinte minutos e pode ser visto integralmente aqui. Começando com imagens do genocídio do Ruanda, nos anos 90, e um cartaz com a imagem de Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II, Yuri Dojc questiona diretamente o silêncio da Igreja Católica perante a Shoah levada a acabo pelos alemães e explica a um jovem ruandês que “não se pode captar imagens calmas quando se fala de um genocídio”.

Porém, quem olhar para as imagens que ele captou na Eslováquia e agora nos mostra, dirá que elas são calmas: livros mortos flutuando no azul frio, restos de letras que as traças não comeram por conterem demasiada tinta e parecem estar na iminência de levantar voo, ruínas de sinagogas, cemitérios, o encontro quase milagroso, numa outra sinagoga, de uma livro que pertencera ao seu avô, o rosto de seu pai iluminado pelas quatro velas de uma Menorah. Tudo no seu trabalho é calmo e terrível ao mesmo tempo, porque Yuri quer falar-nos de dois mil anos dessa perseguição contínua que os cristãos fazem aos judeus, mas também quer falar-nos do poder dos livros e do sublime. Cada uma daquelas imagens evoca camadas e camadas de história coletiva e individual, fala de tudo o que se perdeu sem deixar de mostrar que continuamos perante uma questão problemática, uma ferida nunca curada. O passado constitui aqui uma lição mas também a fonte de uma identidade em mutação e, com elas, o fotografo dirige-se aos próprios judeus pedindo-lhes que não apaguem a sua identidade e a sua cultura pelo esquecimento.

Sinagoga de Šaštín, Eslováquia, 2007, que entretanto já foi demolida

Sobre esta exposição, a autora iraniana Azar Nafisi escreveu: “Os livros que aparecem nestas fotografias não são meros objetos. Desfazendo-se em pó, a câmara ilumina como esse momento de desintegração também configura um momento de energia imensa e de movimento, uma última e gloriosa proclamação de transgressão, resistindo não só à morte mas também ao esquecimento.”

Rolo de uma Torah, abandonado em Košice, a segunda maior cidade da Eslováquia, 2007. Fotografia Yuri Dojc

As imagens, quase todas em grande formato, causam uma espécie de vertigem, uma náusea, uma grandiosidade que enfatiza o inumano, o horror, a dor sem fim. No final de um corredor que parece incrivelmente longo e tortuoso, eis-nos em frente à sala da sinagoga de Bardejov, mas que podia ser uma sinagoga arruinada de qualquer país de Europa (ainda há poucos anos se descobriu que a sinagoga de Elvas tinha sido transformada num matadouro de gado). O que fazer? Entramos? Saímos?

“Last Folio” está muito perto da descrição que o filósofo irlandês Edmund Burke fez do sublime: “Tudo o que seja de alguma maneira terrível ou que opera de maneira análoga ao terror”. Por isso é tão importante vê-la. Em itinerância pelo mundo desde 2009, esta mostra fica no museu Coleção Berardo até 29 de Maio de 2022 e segue depois para a cidade do Porto.

Hoje, dia 27 a entrada é livre. No sábado, dia 29, há uma visita à exposição guiada por Katya Krausova