O presidente do IPO de Lisboa disse que ainda está por apurar o impacto da pandemia no sucesso do tratamento dos doentes com cancro, mas adiantou que a perceção dos profissionais é que estão a aparecer casos mais graves.

Em entrevista à agência Lusa, na véspera de se assinalar o Dia Mundial Contra o Cancro, João Oliveira afirmou que os profissionais de saúde alertam para doentes com situação mais graves devido a diagnósticos tardios na sequência da pandemia de Covid-19 e que têm de ser fundamentados.

“Temos que ver com a análise mais detalhada dos registos que temos, nomeadamente os que dizem respeito ao estadiamento das doenças, à entrada no Instituto, e vamos com certeza estudá-la e será objeto de investigação”, avançou o presidente do Conselho de Administração do Instituto Português de Oncologia de Lisboa.

Apesar de ter havido menos referenciações de doentes, sobretudo dos cuidados de saúde primários, que estiveram mais dedicados à pandemia, “a mudança não foi enorme”.

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“Foi mais notória nos meses de abril e maio de 2020, mas depois foi relativamente retomada”, afirmou, ressalvando que “o IPO é pouco sensível a essas variações” porque geralmente recebe “doenças mais complexas, doenças mais avançadas” que, por isso, “se declaram de qualquer modo e acabam por ser referenciadas”.

De um modo geral, a referenciação até aumentou porque o IPO não recebe apenas os doentes reencaminhados pelos médicos de família, o que teve como consequência o aumento da atividade na maior parte das vertentes do instituto, explicou.

Questionado sobre as listas de espera para cirurgia, João Oliveira disse que, devido a “um grande esforço” de todos os profissionais e de organização, tem sido conseguido que estas não aumentem. “Nalguns casos, até diminuímos quer o número de doentes em espera para cirurgias quer o tempo de espera”, assinalou.

“Agora, não é fácil fazer desaparecer as listas espera com as dificuldades que vamos tendo” devido à falta de profissionais e à “quantidade de solicitações que se mantêm”, reconheceu.

“O que é claro é que a necessidade que temos de aumentar a nossa atividade não vai ser possível enquanto não puder haver outra abordagem da questão do recrutamento pessoal e da respetiva diferenciação”, realçou.

João Oliveira observou que, mesmo que seja preciso esperar “um pouco mais” pela cirurgia, os doentes preferem ser operados no IPO.

Em 2021, o IPO emitiu 1.947 vales-cirurgia para os doentes serem operados noutra instituição para não exceder o prazo legal de agendamento e apenas 48 doentes aceitaram o vale.

João Oliveira apontou que continuam a chegar ao IPO doentes dos hospitais privados porque o “plafond” do seguro de saúde se esgotou ou porque precisam de uma terapia específica.

No seu entender, esta situação demonstra que “há uma diferença muito grande entre a prestação de cuidados no Serviço Nacional de Saúde, cujo objetivo é tratar as pessoas, e os prestadores privados, cuja principal motivação, mesmo que tenha uma prática muito correta, é obter lucro pela sua atividade”.

“A necessidade de obtenção do lucro faz com que haja determinadas atividades que não sejam interessantes e, portanto, essas será o SNS a prestá-las”, salientou.

Para João Oliveira, o SNS como existe tem tudo o que é preciso para funcionar bem.

“Não é preciso inventar nada e as melhorias não têm que ir a reboque da pandemia, mas a pandemia deu-nos muitos exemplos e sobretudo mostrou que este tipo de organização que é a do Serviço Nacional de Saúde, do inglês, etc. corresponde à forma mais eficiente de concretizar o direito aos cuidados de saúde que está consignado na Constituição”, vincou.

Agora, defendeu, os mecanismos excecionais que foram usados na pandemia têm de se tornar mecanismos sistemáticos do SNS.

O IPO de Lisboa recebe, em média, anualmente quase 20 mil novas referenciações de doentes. Em 2021, foram pouco mais de 18 mil, um número “muito grande” de doentes em que a maior parte fica de a ser seguido na instituição.

Em média, são acompanhamos anualmente entre 50 a 60 mil doentes oriundos sobretudo na zona sul do país. “Mas temos doentes desde Monção a Vila do Bispo, das ilhas [Madeira e Açores] e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa”.

Sem novo edifício fica em perigo prática do instituto, assume João Oliveira

Por outro lado, o presidente do IPO de Lisboa avisou que, se a construção do novo edifício de ambulatório não avançar, “a globalidade da prática” da instituição vai ficar em perigo.
João Oliveira lamentou que a construção do novo edifício do IPO não estivesse prevista no Orçamento do Estado (OE) para 2022, que foi chumbado e levou à dissolução da Assembleia da República.

“Ficámos muito animados porque este projeto, que é de vários milhões de euros, estava claramente inscrito no Orçamento do Estado para 2021, mas infelizmente não o vimos mencionado no Orçamento de Estado para 2022”, disse, esperando que na proposta do novo OE volte a estar inscrito.

O médico alertou que, “se o edifício não for construído, é a globalidade da prática do instituto que vai ficar em perigo” e “a funcionalidade global, apesar de “muitos outros milhões de investimento” que já estão concretizados no IPO.

O presidente do IPO defendeu que a sua construção “é de uma premência enorme”, porque é um edifício destinado a atos de saúde em ambulatório.

“A oncologia tem evoluído nos últimos anos para uma ampla utilização [do ambulatório] com grandes benefícios, quer na comodidade dos doentes, quer em certa medida nos custos, mas sobretudo na fluidez e na facilidade com se praticam os cuidados”, salientou.

Atualmente, o ambulatório está repartido por “cantos do hospital” que foi feito numa altura em que o doente oncológico estava internado e havia “consultas simples, sem grandes coisas”.

Atualmente, o ambulatório tem cirurgia, “imensos exames, até invasivos”, em que as pessoas ficam umas horas e vão para casa.

O oncologista explicou que o projeto corresponde a um plano funcional que o IPO já fez e reviu de acordo com as observações feitas pelas autoridades de saúde competentes.

Os passos seguintes são as autorizações para lançar os projetos de arquitetura e depois a construção do edifício que ficará situado no atual parque de estacionamento virado para a Praça de Espanha.

De acordo com João Oliveira, foi preciso reprogramar o projeto em função das alterações feitas na Praça de Espanha e, sobretudo, em função dos novos conceitos de gestão hospitalar na sequência da pandemia de Covid-19, nomeadamente as áreas de espera dos doentes e os locais onde se fazem os atos de diagnósticos e terapêuticos que têm que ter características diferentes de circulação de ar e distanciamento entre as pessoas.

A par da construção do novo edifício, o IPO fez “muitas obras de grande vulto” nas instalações existente, como no bloco operatório que passou a ocupar um piso do edifício, passando cinco para nove salas de operações com as mais “modernas tecnologias cirúrgicas”.

Também foi construída uma nova unidade de transplantação de medula, com a passagem de sete para 12 quartos, e modificado o um serviço de imuno-hemoterapia.

Em 2011, o instituto tinha um acelerador linear no serviço de radioterapia. Atualmente tem sete e está em processo de aquisição do oitavo, “indispensável para todo o tratamento de radioterapia”.

O IPO pretende também criar um serviço de terapêuticas celulares que, apesar de já serem praticadas no instituto, envolvem muitos outros serviços, precisando de “uma organização diferente, mais dedicada” que permita uma abordagem mais integrada às doenças, sobretudo hematológicas, como os linfomas de alto grau de malignidade ou leucemias agudas quando se tornam refratários a outros tratamentos.

O responsável salientou que entidades externas de avaliação dizem que o IPO de Lisboa tem sido “um muito bom utilizador das verbas que são postas à sua disposição” seja dos OE, seja dos financiamentos europeus de diversos programas do qual tem sido beneficiário.

“Temos tido uma percentagem de concretização muito alta mesmo no contexto nacional. Até por isso, é preciso fazer justiça ao IPO e conferir-lhe a capacidade de se renovar do ponto de vista da estrutura das instalações”, defendeu.

Despesa do IPO de Lisboa com medicamentos aumentou 50% em três anos

A despesa do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa com medicamentos aumentou 50% nos últimos três anos, representando atualmente cerca de dois terços dos gastos da instituição.

“Podemos dizer que gastamos dois terços em medicamentos e, se calhar, os medicamentos não têm dois terços da importância no tratamento do cancro, nomeadamente nos tumores não hematológicos, que é essencialmente cirúrgico”, observou.

O médico oncologista salientou que a cirurgia é o tratamento e até a cura da maior parte dos cancros, mas admitiu que esta despesa com medicamentos “é inevitável” e que “não é um problema específico do IPO de Lisboa, não é um problema específico de Portugal, mas é um problema”.

Analisando a evolução da despesa com medicamentos nos últimos três anos, precisou que, em 2019, foi de 46 milhões de euros, em 2020 aumentou para 53 milhões e no ano passado a estimativa aponta para um valor acima de 66 milhões.

Sobre as razões deste aumento, afirmou: “O número de doentes tratados não aumentou, o que aumentou foi o número de medicamentos que é aplicado a cada doente e aumentou sobretudo o preço unitário dos medicamentos”.

“Não há nenhum medicamento que venha mais barato do que o anterior e, muitas vezes, medicamentos que se tornam mais baratos, porque já são mais antigos, são substituídos sempre por medicamentos mais novos e mais caros, às vezes, sem um acréscimo correspondente de benefício”, sustentou.

Mas, disse, “é assim que o mercado funciona. O que é certo é que quer em Portugal quer nos outros países não parece ter diminuído a disponibilidade para pagar”.

João Oliveira sublinhou que as empresas farmacêuticas vão colocando os medicamentos no mercado ao preço que percebem que quem compra está disposto a pagar e, vincou, “tem sido impossível até agora romper esta cascata”.

“Há ‘démarches’ a nível europeu e a nível internacional, mas não vi grandes resultados. É quase um fatalismo”, criticou.

Questionado se a despesa também aumentou por serem medicamentos inovadores, comentou que, geralmente, quando nascem, já vêm com “cara inovadora” e já vão ser pagos como inovadores.

“Também é um vício de prática que precisava ser corrigido e que eu espero que a literacia sobre a saúde, o conhecimento e a compreensão do que se passa exatamente na prestação de cuidados venha a corrigir isto no futuro, mas é um caminho prolongado”, lamentou.

O presidente do IPO de Lisboa, que está prestes a terminar o seu mandato, notou que enquanto cada nova contratação “é escrutinada finamente” pelos ministérios da Saúde e das Finanças, mesmo que seja para empregar uma pessoa com o ordenado mínimo, já no que respeita a “esta enorme despesa com medicamentos há muito pouco escrutínio”.

“Percebemos que isso é um sinal de confiança por parte do Governo e das outras entidades escrutinadoras sobre a utilização que fazemos dos medicamentos, mas também por isso é que um instituto como o IPO se sente na obrigação de avaliar o mais rigorosamente possível de que forma é que está a fazer essa despesa”, defendeu.

No seu entender, isso é uma obrigação do Instituto até pelos ensinamentos que pode dar para o resto do Serviço Nacional de Saúde sobre a utilização de medicamentos.

“Queremos fazer jus à confiança que em nós depositam perante as entidades de que dependemos, uma confiança que nos permite lidar com estas despesas enormes, mas achamos que devemos corresponder a essa confiança com maior investigação sobre a efetividade destes tratamentos”, reconheceu João Oliveira.

Reforço do caráter público do SNS requer “alteração radical” nas carreiras

Mudando de assunto, o presidente do IPO de Lisboa defende que o reforço do caráter público do Serviço Nacional de Saúde (SNS) requer uma “alteração radical” da forma como são encaradas as carreiras dos profissionais e a especificidade do setor.

Ou encaramos, a nível nacional, de uma maneira completamente diferente as carreiras, as remunerações, os incentivos, não só financeiros, dos profissionais, ou então estamos automaticamente, mesmo que seja involuntário, a privilegiar a prestação privada”, advertiu João Oliveira em entrevista à agência Lusa, na véspera de se assinalar o Dia Mundial da Luta Contra o Cancro.

Isto porque para os hospitais privados, argumentou, “é muito fácil fazer a diferença para melhor relativamente ao que se passa neste momento com a contratação de profissionais do Serviço Nacional de Saúde”, que é o “problema maior”.

Questionado como combater a concorrência do setor privado, o presidente do Conselho de Administração do Instituto Português de Oncologia de Lisboa respondeu com o que está previsto no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que aponta “medidas excecionais de contratação e de manutenção dos profissionais por parte do Ministério da Saúde”.

“Esta é a pedra de toque de tudo isto. O Serviço Nacional da Saúde é reconhecido como um objetivo maioritário da atividade no país da vida nacional”, sustentou.

O oncologista congratulou-se por o tema da saúde ter sido amplamente debatido na campanha eleitoral para as eleições legislativas, que decorreram no domingo, em que o PS obteve maioria absoluta.

“Fiquei muito satisfeito por ver que o primeiro-ministro foi intransigente em relação ao caráter público da saúde (…) espero que a concretização dessa intenção governamental se mantenha, dando o devido valor àquilo que é a qualidade e quantidade dos profissionais do Serviço Nacional de saúde, que requer uma alteração radical da forma como são encaradas as carreiras, as remunerações, os estímulos, a especificidade que existe na saúde relativamente a outras áreas do serviço público e que está de resto consignada no Programa de Recuperação e Resiliência”, sustentou.

No IPO de Lisboa, adiantou, o problema é mesmo a fixação dos profissionais de saúde. As estimativas do plano de atividades do IPO apontavam para 2.309 profissionais de saúde no final de 2021, mas totalizaram 2.009. A falta é mais acentuada nos enfermeiros.

“Nós dizemos que o escrutínio pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério das Finanças relativamente às contratações é muito restrito, mas agora já nem posso dizer que é na falta de autorizações”, referiu, acrescentando que “as condições que se oferecem são facilmente ultrapassadas por outras que se oferecem nas entidades privadas”.

No caso dos enfermeiros, há autorizações de contratação em número superior aos que se conseguem contratar: “É muito fácil uma instituição privada cativar enfermeiros muito especializados e que gostariam de continuar a trabalhar aqui”.

“Isto é um desperdício de eficiência”, disse, elucidando que numa cadeia de cuidados que conta com médicos e enfermeiros “muito especializados”, quando falta um elemento de uma profissão menos especializada, como um assistente operacional, desperdiça médicos, enfermeiros e tecnologias.

Para João Oliveira, esta situação tem de ser compreendida, defendendo que não se pode encarar um hospital como se encaram outras instituições em que possa haver uma menor especialização.

“Existe a desconfiança, se calhar, de alguns setores de que o Serviço Nacional de Saúde desperdiça meios, nomeadamente meios humanos e que tem gente a mais e que deve ser restringido”, descreveu, contrapondo: “Não é verdade. No Instituto de Oncologia não é verdade, penso eu, em nenhum sítio”.

João Oliveira observou que a complexidade das técnicas para fazer diagnóstico e tratamento do cancro e de outras doenças exige “mais profissionais e não menos”.

“Há que perceber que, aumentando a complexidade do que fazemos para benefício dos doentes e para a segurança deles, tem que haver uma sincronização, o ‘matching’ adequado entre as diferentes profissões e as diferentes carreiras”, defendeu.

Na sua opinião, não haver “uma atenção particular” às carreiras e o facto de haver “muitas discrepâncias” faz com que haja “insatisfações que vão prejudicar o trabalho”.