Não há dúvida de que o livro é um objecto surpreendente (“genial”, p. 62) e explicá-lo às novas gerações que chegaram de forma desenfreada e incauta ao mundo digital é o desígnio deste, emparelhado com outros, como Tipos Curiosos. Pequena história das letras e Biblioteca Nacional, que a Imprensa Nacional já concretizou em parcerias e aos quais aqui a seu tempo fizemos referência, o primeiro dos quais, aliás, elegendo-o como um dos livros do ano 2020. Se a tão essencial pedagogia dos benefícios da leitura como hábito quotidiano dos pequenos visa — tenta! — contrariar a sua adição em vídeojogos e redes sociais (cujos malefícios, também eles transgeracionais, prometem ser devastadores), o admirável mundo dos livros explicado às crianças e aos jovens pode ajudá-los a valorizar esse objecto de civilização de história muito antiga e sempre renovada, que é também um “amigo” portátil e para todas as ocasiões.

Para ser bem sucedido, um livro sobre o livro, e que o explique aos jovens, terá de equilibrar informação na medida certa, linguagem empática e ilustração cativante, apesar da relativa ambiguidade do estrato etário do que se convenciona chamar público-alvo. O que Vem a Ser Isto? não satisfaz inteiramente este protocolo (veremos adiante porquê), mas vence o desafio a que se propõe, embora nos apresente a totalidade do meio livresco — “viagem complexa” (p. 61) — de uma maneira que aqui e ali roça o triunfalismo (oblitera todas as suas imensas precariedades e fragilidades), senão mesmo a tontice: dizer, por exemplo, que “tenho quase a certeza de que tens uma óptima biblioteca municipal ou escolar perto de ti” (Mendes, p. 56) é desconhecer por completo umas e outras, na capital, pelo país afora e ilhas adentro, a sua cobertura geográfica irregular, o magro ou nulo orçamento anual para aquisição de novidades e — absurdo absoluto — em que doações de privados são recusadas alegando falta de espaço (!). A autora não vê — e caramba, isto entra pelos olhos dentro — que o empréstimo domiciliário está a anos-luz de ser prática recorrente e tradição instituída entre os portugueses, e que as bibliotecas municipais são usadas pelos jovens unicamente como salas de estudo com wifi gratuito e aquecimento, e a sua requisição de obras é tremendamente residual. Tontice decerto, mas também algum espalhafato escusado: na nota “A crítica não é toda igual” (p. 59), no rodapé da dupla página dedicada aos críticos literários, comparados a faróis “em que podemos confiar”, e à “crítica com argumentos”, Rita Mendes não resistiu a escrever — mas entre parênteses — que “há quem ache os críticos implicantes, mas os bons profissionais não o são”, sem definir uns e outros…

Título: O que Vem a Ser isto? A história de um objeto surpreendente
Texto: Rita Canas Mendes
Ilustrações: Tiago e Nádia Albuquerque
Editores: Imprensa Nacional e Pato Lógico
Páginas: 66
Preço: 15 €

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dito isto, o livro — que beneficia da discreta colaboração científica de Rúben Dias — é bem capaz de agradar, como roteiro técnico e histórico, pelas páginas dedicadas aos pioneiros chineses, aos monges copistas e às “invenções revolucionárias” de Guttenberg (p. 29), mas também, ou sobretudo, pelos desafios de “faça você mesmo”, com rubricas como “Sê designer por um dia!” (pp. 18-19), “Faz o teu próprio papel reciclado” (pp. 32-33), uma “Receita de tinta caseira” e “Como fazer um aparo” (pp. 36-37) ou “Faz uma encadernação de capa dura” (pp. 48-49). Este convite a experiências em contexto familiar ou escolar envolve os leitores de palmo e meio (ou quase de metro e meio…) num conhecimento tecnológico que também surge pela voz do sujeito narrador, o livro ele-mesmo, por exemplo quando distingue quadricromia e cores directas (“eu fui impresso com três cores directas”, p. 44) ou descreve as diferentes opções de acabamento (“os meus cadernos foram cosidos, como podes ver pelas linhas [fios de linha] …”) (p. 47).

Essa propensão para as tecnologias do impresso — que enforma toda uma série de exposições e publicações em que Rúben Dias se tem envolvido, numa pedagogia contemporânea muito próxima, desafiante até, de algum experimentalismo gráfico actual, que também ajuda empresas lúcidas da indústria gráfica a modernizarem-se para conseguir corresponder, senão mesmo estimular estas novas tendências — não deixa integralmente de lado os circuitos de edição, comercialização e distribuição dos livros, e respectivas logísticas e vicissitudes. Também aqui, de novo, a dura realidade deste objecto surpreendente é discretamente empurrada para a margem inferior da página, como coisa de somenos: “Ao fim de alguns anos [dois ou três em alguns contratos, faltou dizer], se um livro não vendeu grande coisa e a editora não consegue comercializar os livros acumulados, o editor pode decidir abater os exemplares, ou seja, enviá-los para a reciclagem” (“Feitos em picadinho”, p. 54). Talvez por isso valesse a pena mostrar com maior evidência — e sem mínima réstea de macieza — aos juvenis potenciais leitores que o gosto e o futuro do livro deles dependerá um dia.

Os editores e a autora perderam uma boa oportunidade de exibir, nas páginas deste livro, os enormes, admiráveis progressos que a própria literatura infanto-juvenil realizou no nosso país, alcançando prestígio e prémios internacionais, como parte dessa reinvenção do livro que tem na programação digital e na maquinaria industrial de ponta aliados poderosíssimos como não houve durante décadas e décadas no século passado. Manifestamente, com o seu desenho rígido, simplista, sem texturas, anatomicamente inábil, com alguma desproporção de escalas e uma paleta cromática limitada, a dupla Tiago e Nádia Albuquerque ainda está longe de cumprir o padrão artístico a que nos habituaram — nos seus diferentes estilos — André Carrilho, Pedro Fazenda, André Letria, Madalena Matoso, Carolina Celas e alguns outros. Recorrente neste livro, o zelo dum multiculturalismo politicamente imposto, mais que natural ou verdadeiramente convivial, faz dum jovem negro de rastas o representante da figura do “revisor de texto” (verso da sobrecapa). Pessoalmente, como autor até acharia gracioso, mas deixem-me ter as minhas dúvidas…