Escrito por Hermann Hesse em 1919, Ele e o Outro é agora publicado em Portugal pela D. Quixote, seguindo-se a uma edição da Guimarães Editores, entretanto esgotada. Sendo das primeiras obras do autor alemão, que nasceu em 1877, e muito curta, já é impressionante a forma como se imbui dos temas que viriam a marcar a fase da literatura alemã que Hesse, a sós, conseguiu representar.

Em Ele e o Outro, temos Friedrich Klein, um escriturário de meia-idade em plena fuga. Depois de desviar dinheiro ao patrão, fugiu para Itália. Pelo meio, abandonou a esposa e os filhos, e grande parte da narrativa incide sobre essa fuga como libertação, numa narrativa auto-centrada a que não fogem as dúvidas sobre o peso da responsabilidade.

Se, por um lado, até parece que Klein se atormenta pela fuga, também fica claro que o atormentaria mais ainda a prisão numa vida que não queria. Assim, tudo é chutado para canto em prol da realização pessoal, embora esta pareça sempre uma ilusão. Há sempre inquietação e dúvida, movimento que parece satisfazer um impulso, mas que, afinal, só representa a impossibilidade da chegada.

Assim, é impossível olhar para esta personagem sem cogitar a prisão que uma compulsão é. A fase da vida era aquela – fugido, longe da família. O que o impulsionara, mais do que o horror à vida estática que a estrutura familiar pode promover, eram mesmo a compulsão e o desejo de matar a esposa e os filhos. Contra ele, na sua cabeça tortuosa, havia apenas uma solução, que passava por abandonar a antiga vida.

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Título: Ele e o Outro
Autor: Hermann Hesse
Editora: D. Quixote
Páginas: 112

A fuga, no entanto, não lhe mata o impulso. É que, em Klein, como é costume em Hesse, a liberdade que aparenta vir de uma floresta em aberto, de uma paisagem ao longe, nunca é possível quando os pensamentos moldam tudo. Assim, longe da sua antiga vida, Klein está preso dentro da cabeça, agora obcecado com a fuga, e até obcecado com o seu papel no mundo. Pensando em Wagner, pensa também num professor com o mesmo nome que, anos antes, assassinara a mulher e os filhos. Ele rejeitara-o teoricamente, como era suposto fazê-lo, e a condenação moral que apregoara faz-lhe logicamente sentido, ainda que os seus sentidos sejam outros. Assim, a viagem de libertação de Klein implica a prisão dentro dos seus impulsos, como se pode ler:

“Estava implacavelmente à mercê de impressões e sentimentos maus, dolorosos e humilhantes: ódio à sua mulher, dó de si próprio, perplexidade e necessidade de explicações, desculpas e motivos, de consolação.” (p. 26)

Abarcando em pleno as tradições do romantismo, de exageros, impulsos e tragédias, Hesse fez este Klein ponderar o suicídio várias vezes. Não surpreenderá quem conhecer este braço da literatura em que tudo é exaltado – sentimentos, natureza, sensações – a um ponto tal que nem a vida aguenta. Aqui, a personagem, ao invés de saber lidar consigo, tem tendência para a sua destruição. Com estes moldes, a opção de Hesse foi a de encarar o peso do pensamento na sua personagem, pondo o leitor na sua cabeça sem contemplações.

Klein vai-se torturando o tempo todo. Tem noção do que abdica, o que significa que conhecia o peso do que tinha. É permanentemente consciente das suas escolhas, e questiona-as e escrutina-as, no que é uma marca do autor alemão, que põe em palco, em simultâneo, um quadro de filosofia e solidão – assim Hesse mete o Homem no centro do mundo, o que também funciona com minúscula, e questiona o seu valor, a sua pertinência, a sua sustentabilidade, quando se desata dos outros.

Numa história linear sem aparente dificuldade, as escolhas da narrativa vão pela intensidade e pela profundidade. São traços de época, claro, mas também traços individuais da prosa do autor, que pega sempre numa angústia e a lança ao leitor.