Depois de Luto, temos Canción, o segundo romance de Halfon que chega a Portugal, também com o selo da D. Quixote. Num e noutro, os universos tocam-se, e isto se não chegar mesmo a haver sobreposição. No primeiro, o narrador regressa à casa dos avós, que conhecia da infância, depois de ter ido morar para os Estados Unidos, forçado pelas convulsões da Guatemala nos inícios da década de 80. A partir daí, o romance pega em elementos biográficos para fazer uma recomposição da memória, não preenchendo o vácuo. A personagem, claro está, tem o nome do autor.

Também neste Canción Halfon parte dos elementos que tem, deixando o esquecimento tragar o que lhe falta. Há sempre um equilíbrio entre a memória e o esquecimento, entre o marcante e o que não marcou, que se faz em cima das cordas bambas dos segredos. A narrativa de Luto estava particularmente marcada pelo desaparecimento de Salomón, tio do narrador, que morreu na infância, e ei-lo aqui em cheio de novo. Da parte do leitor, não chega a haver recuperação ou a sensação de que as personagens são explicadas ou exploradas. É um regresso ao mesmo ambiente, e à mesma gente, que parece marcado mais por um vício no tema e pela necessidade de o esgotar do que pela vontade de criar uma narrativa coesa para dar a um leitor. Além disso, a ideia do passado como propulsor da identidade chega a saber a chuva no molhado por já haver sido anteriormente explorada.


Título: Canción
Autor: Eduardo Halfon
Editora: D. Quixote
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Páginas: 120

Neste novo romance, o narrador volta-se para o sequestro do avô, em janeiro de 1967, em plena guerra civil da Guatemala. Halfon tem a matéria em bruto, mas negligencia-a ao focar-se no que lhe dói. No livro, lemos que “Ninguém ignora que a Guatemala é um país surrealista” (p. 59) e o que podia ser um romance abrangente acaba por se tornar na história de uma família. Ao dar palco ao que aparece como verdade, perde-se a hipótese de explorar a verdade da guerra civil do país num retrato caleidoscópico. O leitor percebe que está perante uma situação que, a ser espremida, mete os temas centrais da vida em cena, mas o autor optou por ocultar o que lhe foi oculto, e portanto seguimos apenas a sua cabeça quando podíamos seguir a vida. E, ainda que apareçam frequentemente referências ou dúvidas em relação a esta guerra, o ponto de vista acaba por diminuir a magnitude e desaproveitar o potencial que a literatura tem de ir a qualquer canto.

Além disso, ao continuar no mesmo universo, o autor vira-se de tal forma para dentro que parece esquecer que quem está fora procura a estrutura, ao invés de memórias com lacunas. Ao repetir muito do que nos deu em Luto, foca-se desta vez no avô, que nem chega a aparecer enquanto personagem, e portanto, no final, ao leitor tudo sabe a pouco. Não será demérito da escrita do autor, que é limpa, cirúrgica, incisiva, mas uma característica da estratégia narrativa.

Os pontos que Halfon traz ao livro são sempre funcionais, a prosa só sabe ir ao osso. Nisso, convém dizer, o autor escreve como poucos, encarando o operante, puxando a composição orgânica. O problema é que a estratégia literária usada implica ter uma janela e, em vez de a usar para ver o que está fora, ficar vidrado no reflexo. Isto faz com que se veja o essencial sempre a partir do periférico – e o problema é que a periferia fica longe.

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