O antigo dirigente comunista Domingos Lopes aponta ao PCP uma incapacidade em “analisar criticamente” as “perversões” ocorridas na extinta URSS e outros países socialistas, num livro em que apresenta ideias para contrariar um definhamento que diz ser auto-inflingido.

No livro intitulado “100 anos do PCP: Do Sol da Terra ao Congresso de Loures – Resgatar e reconfigurar o ideal comunista, Domingos Lopes sustenta que há “uma incapacidade do PCP, no plano político-ideológico, em analisar criticamente o que se passou na URSS e nos outros países socialistas, levando-os a desprezar as perversões e os crimes cometidos em nome do ideal socialista”. Até hoje, “não houve qualquer reexame“, critica o ex-dirigente do PCP no livro, editado pela Guerra e Paz, e que será apresentado na terça-feira, em Lisboa.

Ao longo de dez capítulos, o autor, que trabalhou no gabinete de Álvaro Cunhal até ao VI Governo provisório quando o histórico secretário-geral do PCP foi ministro sem pasta, defende que o modo como o partido encarou a antiga União Soviética, os países socialistas e até os apelidados países progressistas, como, por exemplo, Angola ou Moçambique, deixou o PCP “incapaz de lidar com os problemas que aconteciam”.

“Qualquer problema que surgia nos países socialistas era obra dos inimigos internos e internacionais”, prossegue Domingos Lopes, completando que o PCP continuava a apoiar estes países “fossem quais fossem as asneiras e até as perversões que cometessem”.

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O antigo militante do PCP, que abandonou o partido em setembro de 2009 depois de mais de 40 anos de militância, revela que “quando algum membro do partido manifestava dúvidas ou discordâncias, era tido como um camarada pouco seguro, que poderia estar a alinhar nas campanhas contra o socialismo”, e que esta postura “desarmou o partido” em vários domínios.

O PCP alinhou “cegamente com as direções”, como se “elas estivessem certas, fizessem o que fizessem”, uma atitude que “matou na origem a necessária capacidade crítica”. Por outro lado, acrescenta, o partido “passou anos a fechar os olhos às graves violações dos direitos e liberdades dos cidadãos daqueles países, proibidos de se manifestar, de aceder aos media, de se organizarem”. Isto fez, na opinião do autor, com que o PCP “perdesse prestígio e confiança política” junto dos portugueses.

“Então, em Portugal, o PCP defende a existência de partidos, mas nos países socialistas, não há direito a formar partidos ou quaisquer organizações que não aquelas que estejam sob a égide da ditadura do proletariado?”, questiona.

Domingos Lopes diz também que o PCP “criou um vazio teórico inexplicável”, na medida em que olhava para os países ditos socialistas como os “alicerces na resolução das mais profundas aspirações populares e jamais voltariam para o capitalismo”, existindo, por isso, uma “anestesia dos filiados” para com a realidade vivida naqueles países.

Domingos Lopes, que fazia parte de um grupo de ex-dirigentes e militantes que pediam a renovação do partido, considerou que a insistência do PCP em considerar a URSS uma “fortaleza inexpugnável” do socialismo o impediu de enfrentar outros partidos. “Essa posição política permanente contribuiu, de modo substancial, para o desarme ideológico do partido para fazer frente à campanha ideológica dos diferentes adversários, que não hesitaram em fazer confundir o ideal socialista com o modelo que implodiu Moscovo”.

Domingos Lopes critica também a direção do partido por falar “para dentro”, já que em vez de “corajosamente assumir os erros, defende-se junto dos militantes para manter tudo como está e continuar a mandar, nem que para tanto tenham de desbaratar todo o enorme capital político que gerações e gerações de comunistas granjearam”. Paralelamente, continua, o PCP “foi afastando quadros e dirigentes que manifestavam dúvidas e se opunham ao excesso de centralismo em contraposição com a democracia mínima”.

Advogando que houve um desfasamento geracional dentro do PCP, Domingos Lopes acusa o partido ao qual pertenceu durante mais de 40 anos de subestimar os resultados eleitorais. “Como se pode entender que, na noite das eleições [autárquicas de 2017], o secretário-geral do PCP [Jerónimo de Sousa] considere que as populações dos municípios que optaram por outro partido haveriam de se arrepender do seu voto? (…) Como se os eleitores estivessem errados quando não votam no PCP”, elabora.

No último capítulo, Domingos Lopes apresenta alguma ideias para “resgatar o ideal comunista”, nomeadamente o “respeito claro e inequívoco pelos resultados eleitorais”, uma “combinação” entre diferentes partidos de esquerda e “respeitar internamente os direitos humanos e lutar para os fazer respeitar à escala internacional”.

A expressão “sol da terra” utilizada no título alude à caracterização da URSS feita por Álvaro Cunhal durante o XXIII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), que decorreu entre 29 de março e 08 de abril de 1966, em Moscovo.