A Ucrânia não tem propriamente muita tradição nas disciplinas de fundo do atletismo. Aliás, basta dar uma vista rápida nas 18 medalhas conseguidas em Jogos Olímpicos para se perceber que andam quase todas em torno das disciplinas mais técnicas (salta em comprimento, triplo salto, martelo, disco ou salto em altura), dos 100 e 400m barreiras ou das estafetas. Mesmo sabendo que desafiava o impossível, Mykola Nyzhnyk quis inverter esse caminho e, após alguns bons resultados sobretudo no plano nacional nos 10.000 metros, arriscou a maratona em Tóquio. Ele como os dois compatriotas desistiram. Oleksandr Sitkovskyy chegou aos dez quilómetros, Bohdan-Ivan Horodyskyy foi aos 25 quilómetros. Mykola Nyzhnyk saiu da prova a pouco menos de meio. Até por ser novo para a distância, não desistiu e foi à procura de algo mais.

Aproveitando esta fase da temporada, o atleta de 26 anos estava a fazer um estágio no Quénia, um solo sagrado entre todos os maratonistas. Em Iten encontrava as condições a nível de altitude como não teria em mais nenhum local na Europa e treinava desde o final de janeiro com o estónio Roman Fosti, numa média semanal a rondar os 200 quilómetros. Era ali a sua rampa de lançamento para o primeiro grande objetivo de 2022, a maratona de Hamburgo, na Alemanha. Sentir-se bem e chegar ao fim era importante após os Jogos.

A 24 de fevereiro, enquanto dormia, recebeu a chamada que não queria.

Do outro lado da linha, Olga, a mulher, grávida de mais de sete meses, relatava as primeiras duas explosões em Brovary, a pouco mais de 20 quilómetros de Kiev, que tinham deixado as janelas de casa a tremer. Pouco depois, mais uma explosão que acionou vários alarmes de carros entre uma crescente coluna de fumo que se começava a desenhar. A mais de 8.000 quilómetros de distância, Mykola pediu apenas para juntar todos os documentos e bens essenciais, sair do apartamento e ir para casa de uns amigos já em em Kiev. Foi nessa mesma altura em que ouviu uma quarta forte explosão. Não havia dúvidas sobre o que estava a acontecer.

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Mykola Nyzhnyk já procurava a melhor forma de voltar ao seu país para ajudar a mulher quando recebeu uma chamada do exército nacional para voltar à Ucrânia. Foi por eles que competiu nos últimos anos desde 2016, quando se alistou. E sabia que, em caso de guerra, seria de imediato chamado como primeiro sargento.  Assim, foi de Nairobi de Budapeste, na Hungria conseguiu que o ajudassem a passar a fronteira, depois um amigo encontrou-se com ele em Khmelnytskyi, apanhou o comboio para Brovary, passou por casa só para ir buscar os pertences mais importantes e essenciais e foi ter com a mulher, que entretanto fugira para Lviv. Em vez de seis horas, conduziu 26. Em vez de ir sozinho, levou duas mulheres e uma criança de dois anos que procuravam sair de Kiev. Em vez de hotéis, foi dormindo umas horas no carro.

“É o meu dever e estou muito motivado. Não servia de forma ativa mas em contexto de guerra tenho de ir defender o país como qualquer outro militar. Não sabemos quando poderemos voltar a nossa casa. Pensei muito na rota que faria quando chegasse mas houve algumas alterações quando cheguei, as coisas não são assim tão simples quando se chega. Não estou nervoso”, disse ao The New York Times este sábado através de mensagens escritas. “Estou muito cansado, nos últimos quatro dias dormi umas três ou quatro horas em média”, acrescentou na segunda-feira à noite. Esta terça-feira, juntou-se ao exército. “Se tiver de usar armas, irei fazê-lo. Os ucranianos vão defender-se com tudo, não perdem a esperança e vão lutar até ao final”.

Olga Skrypak, de 31 anos, também ela uma antiga atleta olímpica que representou a Ucrânia nos 10.000 metros dos Jogos de Londres em 2012 (20.º lugar) e que esteve em 2020 nos Mundiais da Meia-maratona (60.ª posição), preferiu ficar no país. Recusa-se a fugir. E Mykola só espera que tudo tenha passado a meio de abril, quando está previsto o nascimento da primeira filha. “Gostava que se chamasse Myroslava. É um nome que significa paz”, contou ao The New York Times antes de juntar-se ao exército esta terça-feira.