No dia 28 de junho de 1971, Francis Ford Coppola estava a filmar em Nova Iorque as sequências de “O Padrinho” em que os inimigos de Michael Corleone (Al Pacino) estão a ser eliminados em simultâneo, enquanto ele está no batizado do sobrinho. Ao mesmo tempo, a poucos quarteirões do local da rodagem, Joseph Colombo, o chefe da família mafiosa com o seu nome e um dos líderes das chamadas Cinco Famílias da Mafia de Nova Iorque, era alvo de uma tentativa de assassinato que o deixou paralisado para o resto dos seus dias. Segundo alguns especialistas na Mafia, Colombo pagava assim o facto de ter chamado em excesso a atenção pública e das autoridades para as Cinco Famílias, devido aos seus esforços para suspender a produção de “O Padrinho”.

Faz agora 50 anos que o clássico de Francis Ford Coppola se estreou nos EUA, e a Mafia está intimamente ligada à sua história, e não só por ser o tema do filme. Primeiro, os mafiosos tentaram por quase todos os meios impedir que fosse rodado. Depois, acabaram por o aceitar e até incorporar no seu mundo. O FBI tem gravações de escutas em que se ouvem mafiosos citar “O Padrinho”. Salvatore Gambino, um dos grandes patrões da Mafia, sabia de cor várias falas das personagens de Marlon Brando e Al Pacino, e um dos líderes da organização pôs a tocar a banda sonora do filme no casamento da filha.

[Veja o “trailer” dos 50 anos de “O Padrinho”:]

Quando foi anunciado que o “best-seller” de Mario Puzo ia ser transformado num filme pela Paramount, no início da década de 70, a Liga Italo-Americana dos Direitos Civis, fundada em 1970 por Joseph Colombo, alegadamente para defender a imagem e o bom nome dos italo-americanos contra as “ações racistas” das autoridades dos EUA, pôs-se em campo para boicotar a rodagem da fita em Nova Iorque. O pretexto era protestar contra a esterotipação insultuosa dos italo-americanos que o filme iria fazer. Mas o verdadeiro motivo era evitar a atenção que “O Padrinho” iria chamar para as atividades dos mafiosos e para a extensão do seu poder na sociedade americana.   

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os membros da Liga desdobraram-se em protestos públicos contra a fita  e em entrevistas à televisão e restante comunicação social. Mas quando Colombo percebeu que a rodagem de “O Padrinho” iria mesmo para a frente, mudou de métodos. O produtor Albert S. Ruddy saiu de casa uma manhã para encontrar o seu carro de desporto completamente destruído. Outro dos produtores do filme, o lendário Robert Evans, começou a receber telefonemas com ameaças à sua integridade física e à do seu filho. Alguns sindicatos controlados pela Mafia impediram Coppola de filmar em certos bairros e um lote de equipamento técnico dispendioso desapareceu do “set” do filme. Houve ainda duas ameaças de bomba nos escritórios da Paramount em Nova Iorque.

[Veja um documentário sobre Joseph Colombo:]

Atemorizado, o estúdio acabou por combinar uma reunião com Colombo, que teve lugar num grande hotel da cidade. Aí, o chefe mafioso apresentou a Albert S. Ruddy apenas uma condição para que as filmagens de “O Padrinho” decorressem sem problemas: as palavras “Mafia” e “Cosa Nostra” tinham que desaparecer do argumento. A verdade é que a Mafia era mencionada apenas uma vez neste, o que Colombo e os seus homens deviam ignorar. É claro que Ruddy, aliviadíssimo, aceitou o acordo de imediato e as filmagens passaram a decorrer sem qualquer problema, e com a plena colaboração da Liga Italo-Americana dos Direitos Civis. Vários conhecidos mafiosos chegaram mesmo a ir assistir as filmagens e cumprimentar Coppola e Marlon Brando.

Joseph Colombo fez também um pedido pessoal a Ruddy. Que fosse dado um papel de algum destaque a um dos seus homens de confiança, Gianni Russo. Este havia servido como mediador entre a Mafia e a Paramount e já estava ligado ao mundo do espectáculo. E foi assim que Russo fez um teste e, apesar de não ter qualquer experiência de representação, apareceu a interpretar a personagem de Carlo Rizzi, o genro do Don Vito Corleone de Marlon Brando, que lançou a sua carreira de ator. Foi também ele quem conseguiu que a produção tivesse acesso ao local que serve de cenário à casa de Don Vito e da sua família. Gianni Russo tem hoje um “podcast” sobre a Mafia, “The Hollywood Godfather” (o mesmo título das suas memórias) e o seu próximo filme chama-se… “The Godmother”.

[Veja a cena da morte de Carlo Rizzi:]

Russo não é o único ator com conexões ao mundo do crime organizado que entrou em “O Padrinho”, longe disso. O elenco do filme de Francis Ford Coppola inclui pelo menos mais três. O primeiro, e mais conhecido, é James Caan, que personifica Sonny Corleone. Caan, aliás, nunca escondeu as suas relações de amizade com membros do clã Russo, ligado à família de Joseph Colombo, e o seu filho Scott é afilhado de Andrew “Andy Mush” Russo, o líder daquele. Quando certa vez um jornalista lhe perguntou se era membro da Mafia, James Caan, que tem ascendência judaica, respondeu-lhe: “Já ganhei duas vezes o prémio de Italiano do Ano em Nova Iorque, e nem sequer sou italiano.”

[Veja a cena da morte de Sonny Corleone:]

Também Lenny Montana, que interpreta o guarda-costas Luca Brasi e morreu em 1992, era mafioso. Um antigo campeão mundial de “wrestling” que se tornou homem de mão da família Colombo, Montana foi escolhido para o papel pelo próprio Coppola, que o viu no “set” do filme e achou que ele tinha o ar ideal para fazer em “O Padrinho” o que já fazia na vida real. Além de guarda-costas, era também especialista em fogo posto, e nos intervalos das filmagens gostava de contar as técnicas que usava. Uma delas consistia em mergulhar pensos higiénicos em querosene, atá-los à cauda de uma ratazana, pegar-lhes fogo e deixar o animal à solta no edifício marcado para arder.

[Veja uma entrevista de Francis Ford Coppola sobre “O Padrinho”:]

O quarto ator de “O Padrinho” associado ao mundo do crime é Alex Rocco, que interpreta o “gangster” de Las Vegas Moe Greene. Rocco tinha feito parte de um temível “gang” irlandês de Boston, o Winter Hill Gang, e mudou-se para a Califórnia nos anos 60 com medo de ser assassinado por um bando rival do seu. Decidiu então deixar o passado de criminoso para trás e fazer carreira na representação. Quando conseguiu o papel de Greene, tinha já entrado em séries como “Olho Vivo” e “Batman” e em filmes como “Massacre de Chicago”, de Roger Corman.

“Antes fazer de mafioso em Hollywood do que morrer novo com uma bomba ou um balázio em Boston”, diria Rocco mais tarde. O homem que em “O Padrinho” é assassinado a tiro por um dos homens de Michael Corleone morreu de cancro em 2015, aos 79 anos, num hospital de Los Angeles. Cinquenta anos depois da sua estreia, “O Padrinho” continua a ser fonte de muitas histórias relacionadas com o mundo do crime organizado nos EUA e as lutas de poder no seu interior que retrata, e que detalhou ainda mais nas partes II e III.