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“Nós não sobrevivemos na Madeira sem as levadas”. Como a água é o "Sistema Circulatório" da ilha

Este artigo tem mais de 2 anos

Arquiteto alerta que "devido à orografia tão acidentada da Madeira, a água perde-se muito facilmente sobre o mar". Daí, ao longo dos séculos, o homem ter construído levadas, para conduzir a água.

9 fotos

A primeira imagem que se vê na exposição “Sistema Circulatório”, na Galeria Espaço Mar, da Escola Básica e Secundária Gonçalves Zarco, no Funchal (Madeira), é um tornadouro numa vitrine. Conhecido regionalismo, ler a palavra tornadouro — e até compreender o seu significado — soa estranho para quem não é madeirense.  São “as pedras em cima dos trapos — antigamente até era sobre folhas secas — para construir um obstáculo à água, encaminhando-a para a rega”, resume o artista Martinho Mendes em entrevista ao Observador. “É um objeto que remete para o labor, sacrifício no movimento contínuo de transporte de água”, complementa.

O protagonismo é dado à rocha por ser a responsável pela distribuição da água pelas pequenas levadas: “Analogicamente, estamos a falar de vasos sanguíneos”. E é, precisamente, nesta comparação — existente desde o século XVI, quando o padre Gaspar Frutuoso realçava nos sermões a riqueza hídrica da Madeira — que assenta o título da deste trabalho que estará exposto até 7 de abril. “Quais veias de um corpo”: eram as palavras ditas para caraterizar as levadas.

Além do vocabulário específico da região, há outros fatores que deram luz ao projeto. Há sistemas de canais de água noutros pontos do globo, todavia na Madeira a rede é “muito densa para uma ilha onde aparentemente a água é abundante”, explica o arquiteto David Oliveira na mesma conversa. Porquê o “aparentemente” na frase?

Devido à orografia tão acidentada da Madeira, a água perde-se muito facilmente sobre o mar, ela cai quase verticalmente. Construir levadas é garantir a sobrevivência e a permanência do ser humano neste território tão difícil de ocupar”, justifica, realçando que: “Nós não sobrevivemos na Madeira sem estas levadas”.

O objetivo primordial das levadas era transportar a água até ao consumo humano, irrigar os canaviais e mover os engenhos tradicionais de moer as cana-de-açúcar. Mais tarde, começaram a ser encaradas como percursos pedestres pelos madeirenses das zonas mais isoladas — percorriam-nas para ir vender, por exemplo, fruta à capital.  Com o decorrer dos anos, veio a produção de energia elétrica: “As levadas não só trouxeram água, mas também trouxeram luz à população”, sublinha. Só na década de 90 surgiu o turismo associado às levadas.

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A água teve um papel crucial na modelação do território, acredita Martinho, mencionando que o sistema circulatório de hoje “foi um processo de construção de séculos e ardo”.

O arquiteto vai mais longe: “Houve, efetivamente, uma destruição e descaraterização da paisagem. Conseguimos perceber a olho nu que isso aconteceu”, vinca. O processo foi necessário, contudo, em nome da melhoria das condições de vida dos madeirenses, mas há que ponderar os ganhos e as perdas de um processo que “não foi o mais positivo em termos de simbiose entre ser humano e natureza”. “É flagrante a transformação, ninguém consegue esconder”. E deixa a dica: falta um estudo de caraterização do território e de preservação.

Evolução da paisagem Evolução da paisagem

É o mesmo local, a mesma perspetiva. Contudo, a paisagem mudou completamente: menos socalcos, mais casas e estradas

Cortesia David Oliveira e Martinho Mendes

Já na inauguração da exposição, Miguel Albuquerque, Presidente do Governo Regional da Madeira, assumiu que “há erros como há em todo o processo histórico”, ressalvando que os ilhéus têm atualmente “a generalidade do acesso à educação e à cultura”, à RTP Madeira.

“A Madeira é um território de extrema dificuldade de intervenção”, como provam as fotos e os documentos reunidos na exposição, onde se vê os trabalhadores amarrados às íngremes montanhas. Aliado ainda ao ano de seca, a questão da água tem de ser cuidadosamente pensada, ressalta o arquiteto, exemplificando com o facto de a precipitação ser intensa na cordilheira central e, por isso, deveria ser aproveitada.

A paisagem e as catástrofes naturais

A Madeira é densamente povoada no sul. De acordo com os Censos 2021, citados pelo Diário de Notícias da Madeira, só o Funchal tem 105.919 habitantes, enquanto os concelhos do norte têm drasticamente menos população, por exemplo, no Porto Moniz vivem 2.521 pessoas e em São Vicente 4.874. Proporcionalmente, ocorreu um aumento de imobiliário, contudo “a ilha não é infinita a nível de espaço”, recorda Martinho. Aliás, um dos problemas urbanísticos é a ocupação de leitos das ribeiras, “onde deveriam ser proibidas construções”.

Relembrando as catástrofes naturais que assolaram a ilha, nomeadamente o 20 de fevereiro, “a ausência ou o desrespeito do planeamento faz com que o ser humano esteja a aumentar a sua vulnerabilidade”. Sem pretender o regresso aos tempos de servidão, que outrora dominavam, nem tender para uma visão nostálgica, devesse reencontrar a original vocação produtiva dos socalcos, em alternativa ao abandono ou à passiva contemplação ou às construções desmedidas.

Um terreno agrícola — outrora cultivado, mas atualmente abandonado –, nele aumenta o crescimento de ervas, que no verão ficam secas, árvores, ramagens – inflamáveis, muitas das vezes – portanto, propicia mais incêndios. O fogo não se alastra em culturas irrigadas”, informa Martinho.

Desastres naturais são inevitáveis e, por isso, o discurso sobre preservação, considera David, tem de passar obrigatoriamente pelo tópico de segurança: “Se nós dissermos que é inseguro abandonar os poios [regionalismo para socalcos] é meio caminho andando para se começar a proteger os poios”.

Como o caminho de um arquiteto e de um artista visual se cruzaram

Como um “arquivo pessoal” e ligado à experiência de acompanhar o pai nas lides agrícolas, há algum tempo que Martinho regista fotograficamente os tornadouros.  O problema? Apercebeu-se que a escala e a noção de paisagem que idealizou estavam reduzidas a um objeto. É aqui que decide endereçar o convite a David Oliveira, membro da equipa que está a preparar a candidatura das levadas para Património Mundial da UNESCO. “Ficou entusiasmado”, conta.

Conhecia o trabalho específico do arquiteto, porque leu a sua tese de mestrado “Terroir”, que “curiosamente” incide sobre como a vinha e as construções arquitetónicas modelaram a paisagem insular. No documento estava indicado o e-mail e, numa mensagem, felicitou “a paixão” presente no trabalho e a amizade começou via correio eletrónico – acabaram até a descobrir que pertencem à mesma freguesia: o Estreito de Câmara de Lobos.

A formação universitária em arquitetura e o consequente distanciamento à ilha com breves passagens apenas nas férias é que fizeram David reparar nos contornos ímpares da ilha que o viu nascer. “A paisagem nunca foi um tema que eu tivesse noção no meu crescimento. Era uma coisa que existia, mas que eu não estava consciente de”, revela.

David esqueceu-se de olhar à volta na juventude, mas há quem lá viva a vida toda, construindo um sentido de pertença, sem se aperceber do conceito de paisagem.

O agricultor não pensa tanto no conceito de paisagem, mas vê as levadas, os socalcos e os outros conceitos de forma igualmente relevante. Não vê como a identidade da nossa terra, vê como a razão de conseguir subsistir, de conseguir retirar os alimentos e os produtos agrícolas. Vai tratá-los [conceitos geográficos] de forma digna para que ele consiga também usufruir dos elementos provenientes dali”.

E Martinho aproveita a deixa para relembrar que “o agricultor está permanentemente a construir paisagem”, já que “a modulação acontece com a ação de cada um”.

A vertente educativa da exposição

Com uma vertente marcadamente educativa, na Galeria Espaço Mar, que consta no Plano Nacional das Artes, a exposição quer unir a “diluição e flexibilidade de disciplinas e a relação com o quotidiano”, desenvolvendo a sensibilidade estética e o pensamento crítico dos jovens. Essa “diluição” convoca diferentes áreas de conhecimento, desde a história regional, a geografia (com os conceitos de demografia, orografia, pluviosidade), a educação visual (representação dos mapas, leitura das escalas) e as ciências naturais. No fundo, assumem os responsáveis do projeto, querem ensinar os alunos a definir paisagem. Então, no fim, o que é paisagem?

Ela não é algo exterior a nós, não é algo que se capta através do desenho, da fotografia ou da pintura como sendo algo bonito e que nós contemplamos à distância. É sim um conceito vivo, orgânico, que implica transformação dos territórios pela ação humana. E, claro, são ocupações que nem sempre são harmoniosas”, remata Martinho.

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