O japonês Mamoru Hosoda, que alguns consideram o sucessor de Hayao Miyazaki (uma designação que ele recusa), é um apaixonado pelo fantástico e pela ficção científica, e um interessado pelo mundo virtual, que já pôs em cena em duas das suas longas-metragens de animação, “Os Digimon: O Filme” (2000) e “Guerras de Verão” (2009), e em várias curtas. Depois de “Mirai” (2018), em que um menino descobre um jardim mágico que lhe permite viajar no tempo e conhecer parentes de outras eras, Hosoda volta à dimensão virtual com “Belle”, uma releitura da história de “A Bela e o Monstro” para a idade digital e das redes sociais, compaginada com uma intriga de infelicidade e desconcerto adolescente.

[Veja o “trailer” de “Belle”:]

A heroína do filme é Suzu, uma rapariga que vive no Japão rural com o pai. Nunca mais foi a mesma desde que a mãe morreu afogada num rio quando ela era pequenina, para salvar uma menina. Suzu vive angustiada e ensimesmada, incapaz de se relacionar normalmente com o pai, os colegas da escola (salvo uma, a sua única amiga) e o rapaz que conhece desde miúda, pelo qual está secretamente apaixonada. Era uma rapariga muito dada à música, mas depois da tragédia que lhe levou a mãe, não consegue cantar uma nota sem se sentir logo mal.

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Um dia, toma conhecimento de uma enorme comunidade virtual chamada U, e cria um avatar para entrar nela. Em U, Suzu vê-se transfigurada em Belle, uma linda e sofisticada cantora, cuja voz cativa milhões de outros membros, que passam a admirá-la e adulá-la (“Belle” esteve para ser, originalmente, um musical). É então que ela conhece o Dragão, um misterioso, revoltado e hostil membro de U com uma forma monstruosa, que é constantemente perseguido pelas autoridades da comunidade. Belle sente-se atraída pelo Dragão e intrigada pelo sofrimento que detecta sob a sua capa de agressividade. E vai arriscar a sua fama e a identidade que assume em U, para descobrir quem se esconde sob o avatar do monstro, e porquê.

[Veja uma entrevista com o realizador Mamoru Hosoda:]

Quer a história do filme, quer o discurso que Hosoda faz através dela sobre a nossa relação com o mundo virtual, a dualidade de personalidades que ela implica, e sobre as redes sociais, são familiares e previsíveis até certo ponto. Isto embora ele se abstenha de fazer juízos simplistas e diabolizadores sobre aquela e a Internet (que vê como um lugar com muitos perigos, mas onde também “as pessoas se podem libertar das suas limitações e reinventar-se”). Onde “Belle” se eleva é estética e visualmente, mesmo considerando a codificação estereotipada na representação das personagens humanas da “anime” (traços “ocidentalizados”, olhos grandes e arregalados, caras muito iguais, expressividade limitada).

Momoru Hosoda faz contrastar fortemente o mundo “real” do Japão por onde se movimentam Suzu e os seus comparsas, e o mundo virtual de U, aquele concebido em animação tradicional e este em animação digital, sofisticada, detalhadíssima no primeiro e no segundo plano, e deslumbrante (embora cedendo por vezes ao lado mais “kitsch” e “cute” da cultura “pop” japonesa). A conceção da personagem de Belle foi entregue a um conceituado colaborador da Disney, o sul-coreano Jin Kim, enquanto que o dragão foi desenhado por uma jovem estreante, Akiya Kageichi, e a produtora de Hosoda, a Studio Chizu, contou com a irlandesa Cartoon Saloon (“The Secret of Kells”, “A Canção do Mar” e “Wolfwalkers”) para fazer os “backgrounds” de U, o que diz bem da dimensão e complexidade do projeto.

[Veja uma cena do filme:]

A música é importantíssima no filme, embora as canções não sejam, decididamente, para todos os gostos. O realizador recorreu a um quarteto de compositores para a banda sonora e Kaho Nakamura, que dá voz a Suzu e a Belle, escreveu as letras de algumas canções, bem como o próprio Hosoda. “Belle” é a animação de Mamoru Hosoda mais grandiosa e ambiciosa até hoje, concebida a pensar numa audiência global e para pedir meças à Disney/Pixar nos mercados internacionais. Mesmo assim, podemos preferir-lhe filmes anteriores como “A Rapariga que Saltava Através do Tempo” ou “Mirai”, que são narrativa e esteticamente mais simples e despreocupados, e menos arrojados e elaborados do ponto de vista técnico, mas não menos imaginativos que este.