Um director de museu nacional durante dezasseis anos, que teve cargos de relevo em instituições nacionais e internacionais da sua especialidade e escreveu com regularidade e liberdade — ao contrário da larga maioria dos seus pares, quietos e calados — na imprensa sobre políticas culturais e patrimoniais, chega ao limite de idade do funcionalismo, reúne ipso facto, num gesto raro, centena e meia dessas intervenções num grosso tomo, e ninguém em jornal ou revista lhe dá atenção ou importância. E pergunta-se: mas em que país foi isso? Ora, Portugal, o tal das “três sílabas de plástico para ser mais barato”, ou o “nosso Portugalete” (cit., p. 13). Sem surpresas, de resto, infelizmente.

Não é preciso concordar sempre — ou sequer concordar uma única vez — com Luís Raposo (1955-) para estimar a sua “intervenção cívica e cultural” estendida por meio século (1971-2021), que este livro colecta e quase faz coincidir com o arco temporal do regime democrático em celebração que já se anuncia politicamente instrumentalizada. E a verdade é que mal se discutirão os benefícios do pós-1974 se for deixada de lado a história das políticas de conservação e estudo do património cultural e o papel dos museus na exibição e investigação da “vida portuguesa desde sempre”, dois desígnios que haveriam de ser transversais às escolhas ideológicas e às preferências eleitorais de cada um e de todos. Não são, e o próprio balanço não é lá grande coisa.

Pode mesmo dizer-se que o livro — em 1971 Raposo já reclamava da falta dum curso universitário de arqueologia (p. 16) e de legislação actualizada (p. 18) — é um testemunho cabal dessa deriva mole e inconsistente, oscilante ao vapor dos protagonistas de cada momento ou ciclo político, em geral bastante ignorantes dos debates e tendências que agitaram e agitam positivamente tais meios e ofícios nas últimas décadas. Obviamente que a contínua precaridade ou a quase indigência quotidiana das instituições tão-pouco permite que os seus quadros científicos ou museológicos sigam com justa expectativa o que se faz além-fronteiras, noutra Europa, nas Américas e também na Ásia, mas no extremo oposto está um outro adversário hostil e igualmente duro de moer: “a ignorância e a inconsciência” duma população pouco ilustrada e exigente consigo mesma, que pouco evoluiu até hoje e melhores expectativas não pode nem quer ter, ou dar. Ainda jovem, o autor — que em 1988 dirá, num puro eufemismo, que “o processo e o ritmo seguidos em cada país na passagem do diletantismo ao profissionalismo da actividade arqueológica não foi nem continua a ser o mesmo” (p. 34), fazendo notar que “em grande parte dos museus arqueológicos portugueses os espólios estão por inventariar e estudar em altíssima percentagem” (p. 39) — surpreendeu-se ao ver, algures no Ribatejo, um valioso sarcófago romano servir de tanque para lavar a roupa (p. 19).

Por mais que se suponha que desde 1974 as coisas mudaram muito, e mudaram sem dúvida alguma coisa (em legislação e fiscalização de obras privadas, por vezes com exasperante fundamentalismo), estamos hoje, ao nível das comunidades locais e das organizações e orçamentos públicos, muito aquém do desejável e do necessário, tanto quanto, bem antes, nos havíamos alheado da “explosão museológica” (p. 103) vivida na Europa do pós-guerra. Se “os primeiros arqueólogos profissionais surgiram ligados ao Gabinete de Sines na época de Marcelo Caetano” (p. 126), em finais de 1990 património e ambiente viviam — regista Luís Raposo — “um divórcio profundo” (p. 120). Em 1994 denuncia que, “no organismo que se diz ser do Património Arqueológico, não existem arqueólogos em postos de chefia importantes, tanto ao nível regional como a nível nacional” (p. 72). Um Conselho dos Museus, “de composição exemplar”, previsto na lei-quadro dos mesmos (Agosto de 2004), “nunca funcionou” (2015; p. 282). E assim sendo…

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Título: Arqueologia, Património e Museus. Meio século de intervenção cívica e cultural
Autor: Luís Raposo
Editor: Colibri
Páginas: 581

A descoberta das “extraordinárias” gravuras paleolíticas do Vale do Côa, em Janeiro de 1995, permitindo sugerir “estar a nascer na raia do Douro um novo mundo para a Arqueologia europeia” e “uma nova província artística” (pp. 75, 76), colocou subitamente a Arqueologia e os arqueólogos numa evidência mediática inusitada. Raposo comenta isso dum modo quase caricatural, preferindo apontar para “o pântano [legislativo e funcional] que tem permitido a destruição maciça de “pequenos Côas” (p. 77) e a “triste figura” do IPPAR, com os seus estudos de impacto ambiental comparáveis a “embustes grosseiros” (p. 119) e um conselho consultivo inepto (“quando menos o IPPAR intervier, melhor para a nossa arqueologia”, p. 78; “o estado calamitoso do nosso património arqueológico”, p. 82).

Numa intervenção enérgica — “O lado oculto do Côa”, 11 de Novembro de 1995 —, escreve que, “com o tempo, o IPPAR transformou-se numa espécie de empreiteiro ao dispor do dono de obras”, o mesmo é dizer “celuloses, Transgás, Brisa, EDP, empresas privadas, etc.” (p. 87). Meses depois, insistirá ainda: “Se o Côa tiver servido pelo menos para garantir que os estudos de impacto ambiental vão passar a ser levados a sério, sem quaisquer promiscuidades entre executantes e fiscalizadores, ele já valeu amplamente a pena” (p. 90; itálico meu). Outro efeito importante haveria de ter: “um marco fundamental [um antes e um depois Côa] para o desenvolvimento da Arqueologia e para a afirmação da profissão dos arqueólogos em Portugal” (p. 110). Quanto ao Museu ali construído, a controversa posição do autor aparece aqui um tanto ou quanto truncada por ausência dum seu parecer — aliás citado na p. 121 — que o equipava a um “luna-parque”, “maior e mais caro que todos os museus existentes no país” (p. 227), e de custo três vezes superior ao do então muito recente Museo Nacional de Altamira (3-4 milhões de euros, projecto do arquitecto Juan Navarro Baldeweg, 2001).

O arqueólogo inclui no seu livro-testemunho intervenções dos mais variados tipos, de revisitações históricas da arqueologia tal como praticada no nosso país, memórias pessoais (Ródão, por exemplo, pp. 159-63, mas também alguns lençóis de facebook…), até outras que incidem sobre realidades muito concretas, como a “situação grave” do uso desregulamentado de detectores de metais, elogiando em contrapartida o bom exemplo dos clubes ingleses de detectoristas — “é através deles que a esmagadora maioria dos chamados “tesouros” arqueológicos tem sido incorporada nos museus britânicos”, diz à p. 131 — e preferindo “mecanismos expeditos de recompensa” a detectoristas registados por achados arqueológicos de valor (p. 134), como “primeira vitória sustentada na luta contra o mundo subterrâneo de tráfico de antiguidades” (p. 135).

A protecção do património é sem dúvida um “contrato social por excelência” (p. 154), mas o autor não explica como poderia a “efectiva profissionalização da arqueologia”, por si só, vencer “uma visão um tanto aristocrática do que deve ser o estudo e salvaguarda do património cultural” (p. 135; itálico meu), aliás aqui considerado dum modo muito sectorial. A frase é tão marcante que Raposo a repete na p. 196, mas nunca explicita que visão elitista seria essa e quem de facto a representa, sequer se ela denuncia — apenas — o preconceito ideológico do autor ou se aponta aos arcaísmos científicos do velho Museu Geológico da Academia Nacional das Ciências, que denuncia, pois ainda não aproximavam arqueologia, antropologia e história, ou por que seja. Tão-pouco o artigo saído no Público a 4 de Junho de 1990, “A Igreja e o património”, assinalando os limites da sua própria intervenção, ou um outro, em que a regionalização é elevada ao estatuto de panaceia (p. 188), esclarecem esse ponto, que todavia me parece central na ponderação destas coisas.

Luís Raposo, que por várias vezes se afirma como historiador (embora não se lhe conheça obra enquanto tal), também refere “o velho triângulo de amor e ódio entre arquitectos, arqueólogos e historiadores de arte”, todavia “condenados a entenderem-se” a partir da “afirmação profissional plena de todos eles” (também 1990, p. 192). Esquivando-se a calibrar a relevância de uns e outros nas intervenções conjuntas em monumentos históricos ou arqueológicos (não basta dizer “cada caso é um caso e como tal deve ser entendido”), quase distraidamente, assim como quem não quer a coisa, lança-lhes alfinetadas: “um bom número de especialistas de formação histórica continua a pretender que o seu pequeno mundo se distingue dos demais” (p. 196); “[os arquitectos], longe de “arquitectarem”, povoam hoje os corredores do Poder em quantidades tais […]” (p. 191). Mas é sobretudo à configuração — ou à sucessiva reconfiguração — das estruturas do Estado dedicadas ao património que atira as suas balas, curiosamente começando por reconhecer que o sistema institucional recorrente no antigo regime, coroado por “um organismo de grande credibilidade institucional”, tinha “coerência e relativa adequação administrativa” e descia até “uma rede de comissões municipais [de arte e arqueologia] e delegados concelhios, onde o professor, o padre, enfim, o notável de cada terra poderia encontrar um espaço próprio de afirmação e utilidade social” (p. 202).

Esse edifício, alterado em 1973, colapsou em 1977 com a extinção da Junta Nacional de Educação e seus órgãos consultivos, e em 1980, com a criação do Instituto Português do Património Cultural, “verdadeira vaca sagrada dos anos 80” (p. 204): “um complexo labirinto de corredores e gabinetes” (p. 206) a que chamará em artigo de Agosto de 2012 — e com certificada justeza — “um monstro administrativo” “ingovernável” (pp. 245, 275) e com uma “orgânica opressiva e ineficiente” (Maio de 2013, p. 422). A Lei do Património Cultural, de 1985, aprovada no Parlamento por unanimidade, continuava por regulamentar sete anos depois e, por isso, incapaz de “produzir os efeitos desejados, enquanto dia após dia se toma conhecimento da destruição de parcelas do nosso património, por vezes em circunstâncias que as medidas previstas na Lei poderiam obviar” (p. 208) e de enviar para publicação na folha oficial “centenas de processos de classificação de bens patrimoniais” (p. 217). “Grandes princípios, sem instrumentos práticos que os executem, — dirá com razão pouco adiante, — apenas servem para iludir os incautos” (p. 221). Além disso, “aquilo que importa é ter a coragem de repartir responsabilidades, dentro e fora da máquina administrativa do Estado”, incluindo nisso “o conjunto das comunidades técnico-científicas actuantes em cada domínio disciplinar considerado” (p. 211), autarquias, universidades ou parques e reservas naturais. Raposo está, ainda assim, consciente dos riscos do corporativismo profissional e duma “espécie de caleidoscópico autárquico, sujeito a todo o tipo de potenciais caciquismos, ainda por cima mal informados tecnicamente” (p. 216).

Lucidamente oposto “a uma política do património cultural centrada em parques temáticos ou até na mera musealização de sítios históricos”, na qual cada cidadão seria “sub-repticiamente substituído” por um pagante infantilizado, e centrada também em museus “voltados para o turismo de massas”, à maneira de “supermercados patrimoniais” (pp. 227-29), o arqueólogo tropeça subitamente numa série de barreiras ideológicas rudes e abusivas, que constrangem. (Bem sei que o artigo saiu numa revista política, longe dos ditos holofotes da imprensa diária, mas…) Na p. 229, em preto de tinta sobre papel claro e depois duma citação de Lenine “que mantém toda a actualidade” (sic), aparece isto: “não chega à esquerda reivindicar para si o terreno libertador da razão e do estudo”; “à esquerda nunca é de mais afirmar que o passado é complexo”; “a esquerda defende valores, atribui significados”; “o passado pertence-nos [à esquerda, pois claro!], seja para afirmar distâncias, seja para expressar identidades”. Passemos adiante, em especial porque logo depois se lê: “a definição das políticas do património cultural atingiu nos últimos anos níveis de autocracia piores dos que os que existiam durante o Estado Novo? Custa reconhecê-lo, mas é a mais pura das realidades” (2010, p. 241); ou então, “museus centenários, dotados durante décadas de quadros de pessoal próprios e orçamentos privativos, com estatutos e regulamentos autónomos publicados em jornais oficiais, estavam e estão reduzidos à condição humilhante de meros balcões de atendimento de um serviço central, sem garantias de estabilidade das equipas” (p. 244). A propósito da reforma da última desenhadora do Museu Nacional de Arqueologia, Helena Figueiredo, em 2019, informa: “éramos próximo de uma centena há quatro décadas […], hoje seremos pouco mais de três dezenas” (p. 508).

Essa capacidade e autonomia foi sendo drasticamente esmagada, inclusive impedindo a candidatura directa dos museus a fundos comunitários (p. 272), o que desmotiva equipas e drena recursos gerados que poderiam ser aplicados internamente, compensando dotações curtas e insuficientes, mas não é isso que sucede, mesmo quando — ferindo a integridade estatutária consignada em documentos de instituições internacionais a que se aderiu, e a lei-quadro — se alugam espaços dos museus nacionais para eventos comerciais ou privados (por exemplo, automóveis eléctricos expostos no novo Museu Nacional dos Coches, em Maio de 2017, um evento de grande impacto criticado na p. 315). Num outro assunto delicado, o da gestão privada de monumentos, palácios e museus públicos, Raposo aponta uma vez mais para as virtudes do caso britânico: “algo que é rigorosamente cumprido em países de capitalismo sedimentado, como o Reino Unido, onde o sentido da propriedade privada é maior, mas onde o respeito pelo interesse público é levado mais a sério” (p. 255). Também a tendência europeia para a gratuitidade dos ingressos em museus mal chega até aqui, e aos tropeções como em vários artigos é mencionado, mas pouca diferença fará num país com “hábitos culturais” perto de zero e que está bastante longe de reconhecer qualquer museu “como um espaço comunitário onde vale a pena ir regularmente” (p. 384).

A bilhética domina algumas páginas do livro, mas partindo — a meu ver, mal — dos casos Parques de Sintra – Monte da Lua e do apenas imaginado eixo Belém-Ajuda, dois “distritos culturais” ou duas “ilhas de abundância” (p. 294) geridas de forma privada por sociedades de capitais públicos. Raposo não gosta nada disso. Ofuscado pela convicção de que o “ultra-liberalismo tomou conta dos patrimónios nacionais” (p. 296) e faz visitantes pagarem exorbitâncias, omite que — ao invés dos museus tutelados pelo Governo, onde há “casos gritantes de instalações muito deterioradas” (p. 579) — quer na Pena quer em Monserrate se reinvestiram e reinvestem paulatinamente valores recebidos no restauro dos palácios e do chalet da duquesa d’Elba, e numa admirável campanha de resgaste das colecções originais, proporcionando exposições e catálogos — um modelo que bem poderia ser seguido, com vantagens óbvias, por quaisquer outras instituições congéneres. Como seria de esperar, também é crítico do Programa Revive (2017), que abre a privados a possibilidade de regeneração de monumentos históricos, para que sejam “hotéis e restaurantes” (como a Quinta Real de Caxias) em contratos de longa duração. Preferia que, por investimento público — e utopia ilimitada porém instantânea… —, acolhessem “centros de arte e residências de estudantes” (p. 319).

Em escritos dos últimos anos também vai sendo especialmente crítico da transferência para as autarquias da tutela de monumentos e museus, um projecto, diz, envolvido em “clara intenção de opacidade” e “sobreposição nas mesmas pessoas ou departamentos das funções de autorização e fiscalização” (pp. 304, 305). Percebe aí, sublinha, uma “evolução que pode vir a ser catastrófica” (p. 307). Nada menos quanto ao afamado plano estratégico nacional 2020-30, de que museus e património cultural foram, de facto, literalmente excluídos (só se surpreendeu quem quis): “como se escapa como areia entre os dedos aquilo que deveria ser o valor nacional estratégico dos museus e do património”, “quando, em termos reais, os museus não têm [sequer] quem faça estudo de colecções e inventários, mantendo os acervos acessíveis” (p. 337). Em Abril de 2011, desmascara “o reforço do centralismo, mascaradamente descentralizado, com a vantagem de “pôr na ordem” instituições e pessoas julgadas incómodas” (p. 414), num rearranjo estrutural de “cartas ocultas marcadas” (p. 415). Em Maio de 2013, vai ao ponto de falar de “instauração de modelos tão centralistas que fariam corar de vergonha os teóricos do Estado Novo” (p. 422). Em Novembro de 2020, desmonta o Orçamento de Estado para a Cultura como “ficção pura e dura”, que vem juntar-se “à opacidade e ao disfarce” de “até à náusea acrisolados apegos à Cultura” (p. 342). Em Fevereiro de 2016, admite, en passant, que a gestão privada de museus, “pela maior autonomia e leveza dos procedimentos administrativos, se encontra em situação privilegiada para atingir bons indicadores de desempenho” (p. 474), mas tal opção foi posta de parte, até em “equipamentos-bandeira”, como o Museu Nacional de Arte Antiga, então dinamicamente dirigido por António Filipe Pimentel.

Dois anos de pandemia também vieram trazer à luz do dia as enormes fragilidades da representação digital dos museus públicos portugueses, mas Raposo não está nada à vontade nesse assunto essencial e evita discuti-lo aqui e agora com a conveniente amplitude, bastando-lhe, afinal e uma vez mais, barricar-se em prevenções políticas como “propriedade [estatal] dos conteúdos” e “gestão pública”, contra imprevisíveis, quiçá maldosos, “especialistas das tecnologias digitais” e “fabricantes de equipamentos” (p. 348), e defender a “dignidade contratual do trabalho” (p. 544). É por isso que subvaloriza — escandalosamente, quase diria (v. pp. 551-52) — o que museus portugueses e estrangeiros, à volta do mundo, fizeram para manter contacto com os seus públicos, uma actividade digital sem precedentes que expôs toda a hierarquia institucional de profissionalismo e meios de acção activados, mas também encantou os amantes de arte confinados em casa pela pandemia de Covid-19.

Mas esse não o único tema da vida dos museus em que o autor se mostra pouco preparado ou menos atento, incisivo ou acutilante: também o chamado serviço educativo, envolto em debate e protagonismo crescentes (é bem curto o que diz à p. 469); a excelência duma nova geração de historiadores de arte e conservadores (que é muito mais do que “espírito escutista”, p. 460, ou o que fica dito à p. 470) ou os enormes progressos no design expositivo não mereceram, nestas 600 páginas, atenção específica e informada. A preocupação maior de Luís Raposo é, “como noutros domínios da vida social, a retirada do Estado [que] visa abrir espaço para o florescimento do negócio privado” (p. 438), a clássica “mercantilização neoliberal da vida social” (p. 456), a “vã cobiça mercantil” (p. 478), os museus como “supermercados postos ao serviço de todo o tipo de parasitagem hodierna” (p. 481)…

Mesmo quando o autor diz que “teremos de estar preparados para os mais radicais desafios, como sejam os da fusão entre instituições e os da própria reinvenção de conceitos até aqui separados, como sejam os de museu, arquivo ou biblioteca” (2015, p. 461), não há mínima aderência a realidades concretas ou descrição ou comentário de experiências pioneiras, mesmo quando a sua presidência do Conselho Internacional dos Museus – Europa se diria susceptível de colocar Luís Raposo em posição privilegiada para isso. Perante o alheamento da população face aos museus no nosso país, que o tal serviço educativo poderia ir delapidando a pouco e pouco, Luís Raposo prefere observá-lo do ponto de vista das “políticas museológicas” — sejam lá o que forem — e das “medidas para pelo menos mitigar o elitismo social que continua a prevalecer nos museus nacionais” (p. 489), outra versão do ‘acabar com os ricos em vez de acabar com os pobres’. A confirmada descida a pique do número de visitantes portugueses, que a gratuitidade “não resolve” (p. 494), é um problema educacional e civilizacional que sequer o massivo interesse de turistas por museus portugueses, públicos e privados, foi capaz de ajudar a corrigir, por mimetismo. O domínio do audiovisual e das redes sociais no tempo de lazer de muitos não passa uma única vez pelas reflexões do autor, para quem o funcionalismo vem primeiro: “o crescente e muito preocupante despovoamento e desqualificação que vai grassando nos serviços públicos, mormente nos museus” (p. 499); “a caminhada para o abismo em que os Museus Nacionais se encontram em matéria de pessoal” (p. 508).

Assunto complexo e urgente, sem dúvida, que a contratação pública não parece disposta a enfrentar — as prioridades do clientelismo político-eleitoral “puxam a manta” noutra direcção —, mas que não é o único a fazer tremer o sector. O mecenato ou a subscrição podem suprir ocasionalmente a ausência dum fundo para aquisições — gerido pela direcção das instituições que as deve acolher —, permitindo trazer para o domínio público obras notáveis levadas a leilões de curto prazo, mas a orientação dos governos socialistas, dominantes nas últimas décadas, não aponta para aí. A figura essencial do coleccionador privado, e a sua notória colaboração para a realização de exposições temporárias, ou constituição de pequenos museus, só lentamente emerge de um longo período de absoluta desconfiança política e de discrição e cautela privadas em que os museus deixaram de ser reconhecidos como seus interlocutores directos, tradicionais e naturais, em favor do honrado protocolo de leiloeiras há muito estabelecidas. São alguns dos tópicos ausentes dum livro extenso com título muito abrangente, mas cuja relevância não passa despercebida a quem acompanhe a vida portuguesa e o ambiente cultural que envolve a história da arte e a rede nacional de museus, confrontada — mas poderá dizer-se que estimulada?!… — com a emergência de museus criados por coleccionadores particulares já com alguma dimensão para a nossa pequena escala, mas irrelevantes em contexto internacional e desde logo peninsular. É também por isso que a convocação, pelo autor, de estatísticas europeias e norte-americanas se torna um exercício quase fantasioso, tão extensa é a variedade e a diversidade de práticas individuais e tradições institucionais e a sua hierarquização histórica, e tão distantes estamos nós ainda de tudo isso.

Luís Raposo escreveu muito, repetiu-se muito, e — sobretudo — não encontrou a saída do velho labirinto.