Khalid Payenda sente-se “incrivelmente grato” por ser condutor de Uber e, assim, conseguir sustentar a mulher e os quatro filhos, em Washington  (Estados Unidos da América). Há sete meses, antes da chegada dos talibãs ao poder, era o ministro das Finanças do Afeganistão. “Neste momento, eu não pertenço aqui [Estados Unidos] nem lá [Afeganistão]. É um sentimento de grande vazio”, explicou Payenda ao The Washington Post.

Como em apenas três meses os talibãs conseguiram entrar em Cabul e derrubar o governo afegão

Numa noite desta semana, ganhou “um pouco mais de 150 dólares (cerca de 136 euros) por seis horas de trabalho – uma noite medíocre”, revelou ao volante do seu Honda Accord. O homem de 4o anos, que faz contas ao que ganha atualmente, já supervisionou um orçamento de seis mil milhões de dólares do Afeganistão.

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Os clientes costumam conversar com Payenda durante as viagens e, ocasionalmente, notam o sotaque e perguntam-lhe de onde vem e há quanto tempo vive nos EUA. A um deles, caraterizou a mudança de país como “um grande ajuste”.

Foi depois da morte da mãe por Covid-19 — internada no hospital de Cabul, sem quaisquer condições, não havia sequer dinheiro para um equipamento médico de 200 dólares (cerca de 181 euros) para a ajudar a respirar — que decidiu ser ministro das Finanças.

Hoje, nunca teria aceitado fazer parte do governo afegão. “Eu vi imensa fealdade, e nós falhámos”, justificou Payenda. A culpa consome-o: “Fiz parte do fracasso. É difícil quando olhas para a miséria das pessoas e te sentes responsável”.

Os líderes afegãos “não tinham a vontade coletiva de fazer uma reforma, de ser sérios”. Apontou, contudo, também o dedo aos EUA que traíram o compromisso com a democracia e os direitos humanos ao tornarem o Afeganistão uma peça central da política pós 11 de setembro.

Payenda renunciou ao cargo de ministro das Finanças uma semana antes de os talibãs conquistarem Cabul. Porquê? Devido à deterioração da relação com o ex-Presidente afegão, Ashraf Ghani. Temendo que Ghani o prendesse, fugiu para os EUA, onde a sua família já estava há uma semana. No dia em que os talibãs venceram, o  motorista enviou uma mensagem ao diretor do Banco Mundial em Cabul:

Tivemos 20 anos e o apoio do mundo inteiro para construir um sistema que funcionasse para o povo. Nós falhámos miseravelmente. Tudo o que construímos foi um castelo de cartas que desmoronou tão rápido. Um castelo de cartas construído com base na corrupção (…) Nós traímos o nosso povo”.

Agora, o foco da sua vida são os filhos: “Uma vida feliz e significativa é aquela em que crias filhos responsáveis, conscientes e não mimados ou materialistas demais”.

Payenda não vai esconder o seu passado dos filhos, nem tão pouco o Afeganistão. Pretende dar-lhes a conhecer a cultura afegã e as suas lutas pessoais, sem nunca os sobrecarregar com o peso negativo da guerra.