“Aquilo é o inferno”. “Aqui, somos como comandos”. Quem diz isto não vai nem está em nenhuma guerra. As frases são dos homens e das mulheres que em “Ouistreham — Entre Dois Mundos”, de Emmanuel Carrère, trabalham na limpeza dos “ferries” entre Ouistreham, em França, e Portsmouth, na Inglaterra. É trabalho duro, mecânico, arrasador e por vezes repugnante. Turnos de hora e meia, começar ainda noite cerrada para quem faz o primeiro, mudar lençóis e fronhas, quatro minutos para fazer quatro camas de um camarote, aspirar, limpar, levar a roupa suja, sempre em contra-relógio, depressa, porque vêm aí os passageiros. E receber à hora enquanto não se tem contrato para poder ganhar o salário mínimo.

Em “Ouistreham — Entre Dois Mundos”, que se movimenta na fronteira entre documentário e ficção, Carrère adapta o livro de não-ficção “Le Quai de Ouistreham”, publicado em 2010 pela jornalista Florence Aubenas, que andou a trabalhar incógnita ao lado das empregadas de limpeza dos “ferries”, para dar rostos, quotidianos, vidas, àqueles mais afetados pela crise, aos precários, aos invisíveis, aos remediados, que subsistem com orçamentos apertadíssimos e estão no fim da cadeia laboral, em empregos instáveis, ingratos, mal pagos, repetitivos, desgastantes. E a maior parte dos quais nunca deverá passar da cepa torta.

[Veja o “trailer” de “Ouistreham — Entre Dois Mundos”:]

Florence Aubenas é rebatizada Marianne Winkler e interpretada por Juliette Binoche, que o realizador, para uma maior autenticidade, rodeou de atores não-profissionais, alguns deles interpretando-se a si mesmos. Fingindo ter-se separado do marido, garagista, que a enganou com uma vizinha, e ficado sem nada, Marianne passa a viver num quarto alugado e do que ganha no mundo das empresas de limpeza. Põe uma bata e luvas de borracha, pega no balde e nos produtos de higiene e vai limpar casas de banho, escritórios, “bungalows”. E é rapidamente despedida. Decide então tentar o “inferno de Ouistreham” e entrar numa equipa que trabalha nos “ferries” que fazem a travessia da Mancha.

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[Veja uma entrevista com Juliette Binoche:]

Além de um dia-a-dia que gasta o corpo, drena o ânimo e abate o espírito, Marianne vai também encontrar calor humano, gente que a apoia, encoraja e partilha com ela o pouco que tem (de um carro a cair de velho a um simples maço de tabaco). Em especial Chrystèle (Hélène Lambert, que parece nunca ter feito outra coisa senão representar), com três filhos pequenos não se sabe de quantos pais, sempre a contar os tostões e a dizer mal da vida, mas compincha a sério, e a jovem e frágil Marilou (Léa Carné), que sonha ir “para longe, muito longe dali” com o namorado. E há ainda Cédric (Didier Pupin), que ela conhece no centro de emprego e que sonha ter uma carrinha de “pizzas” – e percebemos logo que nunca o conseguirá.

[Veja uma entrevista com o realizador e com Hélène Lambert:]

Na linha de Ken Loach nos seus melhores dias, Emmanuel Carrère capta este microcosmo em que Florence se infiltra com um realismo exato e uma humanidade à flor da pele, sem piedades miserabilistas, arremedos lacrimais ou gestos comicieiros. Mas “Ouistreham — Entre Dois Mundos” não é só sobre a imersão em profundidade de Marianne num mundo nos antípodas do seu. É também um filme sobre uma mentira cada vez mais insuportável. Marianne faz jogo duplo com as amigas, que a julgam uma das suas e tratam como tal. A jornalista nunca será como elas e terá eventualmente que se ir embora e deixá-las. Pouco a pouco, é tomada por um sentimento de culpa, nunca mais forte do que quando fica retida no “ferry” com Chrystèle e Marilou, e se enfiam as três num camarote de primeira classe e fazem a festa.

[Veja uma sequência do filme:]

O final de “Ouistreham — Entre Dois Mundos” não trai nada do que o filme contou e mostrou até aí, e se Marianne consegue fazer aquilo que se propôs e ser compreendida e elogiada por alguns daqueles com quem privou em Ouistreham, ela percebe também que perdeu o que de mais precioso ali tinha ganho. Carrère deixa-o bem claro quando filma Marianne, Chrystèle e Marilou à entrada do autocarro que vai levar estas duas para mais um turno num “ferry” acabado de chegar, e os últimos olhares que trocam entre si. Elas voltaram a ser pessoas de mundos estanques.