É comovente voltar ao teatro Camões, em Lisboa e ver 30 bailarinos em palco, sob uma luz intensa que lhes potencia a beleza dos movimentos, que faz crescer o espaço do palco ao universo inteiro. Dois anos de pandemia, programas cancelados, ensaios perdidos, esforço dispersado e no entanto eles movem-se. Movem-se como a Terra, o Cosmos, a vida nas entranhas do céu e do chão que afinal nunca parou, nunca pára de se metamorfosear. E não obstante a nova e preocupante situação geopolítica mundial o novo diretor artístico da CNB, Carlos Prado, quis colocar a tónica na primeira temporada que assina em nome próprio a tónica na “esperança e na redenção”.

Fall, de Cherckaoui é uma peça de 45 minutos para 32 bailarinos. O coreógrafo estará hoje, em Lisboa,  a assistir à estreia. Imagem Hugo_David_CNB

As portas do Teatro Camões, em Lisboa, recebem uma das estrelas maiores da constelação da dança europeia, o coreógrafo belga Sidi Larbi Cherkaoui e a sua criação “Fall”, feita em 2015, para o teatro Ballet Real da Flandres, do qual era o diretor antes de, já este ano, ter assumido o cargo de diretor do Ballet do Grand Théâtre de Genebra. O palco é divido com a peça “Symphony of Sorrows” do bailarino e jovem coreografo da CNB, Miguel Ramalho, desenhada e apresentada apenas uma vez, em 2020.

Neste programa, Carlos Prado (ex- bailarino da CNB e do Ballet Gulbenkian e, desde 2005, Mestre de Dança em companhias de bailado um pouco por todo o mundo), procurou duas atmosferas contrastantes; uma mais melancólica mas heroica, e outra mais etérea e aspiracional. Em ambas jogam-se o peso e a leveza dos corpos perante circunstancias que são maiores que eles. Tal como em ambas o espaço é um elemento fundamental, uma alegoria portadora de significados, presenças ocultas, tensões, tempestades, medo e conquista onde dezenas de bailarinos se deslocam, rastejando ou voando, em piruetas, torções, criando quadros vivos, lembrando que são um organismo feito de muitos elementos, de complexidades várias e sobretudo de ter uma forma própria de assimilar e falar do mundo e ao mundo. Insistir na impossibilidade de compreender a dança, no seu hermetismo é apenas insistir em querer compreender o mundo pelas suas palavras mais fáceis, mais comerciais, mais superficiais.

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“Cherkaoui/Ramalho” é o título do programa que ficará em cena até dia 3 de Abril, e procura inscrever no repertório da Companhia Nacional de Bailado e na memória do público português o nome destes dois coreógrafos. Um, Miguel Ramalho, bailarino solista da companhia, está a agora a começar o carreira de criador que Carlos Prado considera” umas das mais promissoras a nível nacional”. Outro, é um veterano; foi aluno da mítica Anne Teresa de Keersmaeker, tem um currículo onde constam mais de 50 criações, sempre a mover-se entre múltiplas linguagens artísticas, que vão do ballet clássico ao hip hop e ao flamenco, da ópera ao cinema e à literatura. Depois de trabalhos à volta de Tolstoi, Italo Calvino ou Skakespeare, Cherkaoui já trabalhou com Nick Cave e com os artistas plásticos Antony Gormley ou Marina Abramovic. O seu trabalho, embora singularisssímo é, influenciado por coreógrafos como William Forsythe, Trisha Brown, Pina Bausch.

Fall, foi a peça que o muitipremiado criador concebeu para a sua estreia como diretor artístico do Ballet Real da Flandres, e junta a técnica clássica e contemporânea. Imagem: Hugo David/CNB

Sob o signo do movimento perpétuo

“A natureza foi o meu ponto de partida. O outono [“fall” em inglês] é provavelmente a estação mais bonita, porque abrange todas as outras. Prepara-nos para o Inverno, lembra-nos de onde vem o Verão, ou onde ele acaba. Tem essa energia estranha e melancólica, que me parece representar bem a maneira como eu sinto que a vida é” [Sidi Larbi Cherkaoui, sobre “Fall”]

Criador profundamente simbolista, que convoca o espectador a redimensionar o que vê em novos e evolutivos significados, Cherkaoui criou esta peça quando se estreou como diretor do Real Ballet da Flandres, em 2015. Nessa época Carlos Prado já trabalhava como mestre de dança desta companhia belga e foi ele que ensaiou os bailarinos. Dessa pareceria, que o novo diretor da CNB, recorda como “instigante e criativa” nasceu a vontade de trazer a obra para Portugal. Curiosamente, este “Fall”, que brinca com a ambiguidade da palavra, que significa ao mesmo tempo “outono” e “queda” chega no início de uma Primavera chuvosa e onde o mundo treme de novo face a uma nova guerra em solo Europeu, o que lhe dá uma dimensão política que ela não tinha inicialmente.

“Fall” fala-nos da inscrição do individuo nos ciclos da natureza, em que cada ciclo é simultaneamente repetição e renascimento. No outono caem as folhas mas fazem-se as colheitas. Morre-se mas prepara-se o renascimento. Porque se, como nos diz o bíblico Ecclesiastes, não há mais nada no mundo além de repetição, porém, também só ela permite o renascimento, e a resistência, a força inimaginável para renascer, para se elevar do chão rumo ao céu. A tradução disto é uma coreografia com 32 bailarinos em palco, num cenário branco, gelado, ventoso, assustador (que não deixa de nos fazer lembrar o cenário criado pelo designer de moda, georgiano, Demna Gvasalia para a Balenciaga, há cerca de duas semanas na semana da moda em Paris, e que remetia claramente para a guerra na Ucrânia). Pois, hoje, é quase impossível não ver naquela frieza e naquele esforço físico dos bailarinos, a lutarem contra a força imaginária de um vento voraz, uma imagem de uma época que nos coloca de novo face a dias mais duros.

Dançado em técnica clássica e contemporânea “Fall”, com música de Arvo Pärt, joga-se entre a gravidade e a leveza, entre corpos que ascendem e caem, se contorcem, se juntam e se separam, se agregam e se perdem. Carlos Prado assume que é uma peça “de grande complexidade física e orgânica, quer no trabalho individual quer no coletivo”.

Bailarino solista da CNB, Miguel Ramalho, coreografou esta peça elegíaca e de grande densidade poética Imagem: Hugo David/CNB

O espetáculo abre com “Symphony of Sorrows”, a obra de Miguel Ramalho, com cerca de 30 minutos, criada em tempos de pandemia e incerteza, com a morte a rondar os espíritos, e onde também podemos ver a leveza que pode existir no interior do peso.

“Quais são os nossos limites: quão mais pesado eu consigo ser e quão mais leve eu consigo ser? (…)Eu tenho sempre a sensação dr que o peso é uma questão mais emocional, mas que o corpo é sempre mais leve” [ Miguel Ramalho, “Symphony of Sorrows”]

Embora dancem sob um palco densamente iluminado, os 19 bailarinos desta obra, estão todos vestidos de negro. Rastejam, deambulam ao acaso como se perdidos num bosque escuro em busca dos lugares mais ignotos da existência, individual e coletiva. Entre o peso e a leveza a velocidade e a lentidão, sentimos que esta é uma peça à duração, como o Poema à Duração, do alemão Peter Handke, onde se procura não o fugidio, o impulso, mas um espaço interior onde se possa permanecer, não obstante as circunstancias ao nosso redor. De uma grande beleza poética esta sinfonia, com paisagem sonora de Hendryk Górecki em fundo, coloca-nos na expectativa de ver novos trabalhos de Miguel Ramalho e as suas imagens de uma inquietante estranheza.

A estreia de Carlos Prado, bailarino prodígio dos anos 80 e 90, formado por António Rodrigues e Maria Bessa, na Academia de Dança de Setúbal, que foi um dos centros de formação de bailarinos mais importantes do país, é um momento auspicioso para a CNB e não obstante o sinistro o tempo que vivemos, vamos acompanhá-lo na sua visão esperançosa que se materializa no último momento deste programa, quando os longos cabelos soltos da bailarina Miyu Matsui, rodopiam no ar, e as suas piruetas chamam-nos para uma luminosa manhã de primavera.

Carlos Prado considera Miguel Ramalho uma grande promessa da criação de dança em Portugal. Imagem: Hugo David/CNB

Cherkaoui/Ramalho fica no Teatro Camões até 03 de Abril. O espetáculo tem cerca de uma hora e trinta minutos, com um intervalo de 20 minutos. Ao sábado a sessão é às 18 e 30 e ao domingo às 16 horas.